Instante

















Uma semente engravidava a tarde.
Era o dia nascendo, em vez da noite.
Perdia amor seu hálito covarde,
e a vida, corcel rubro, dava um coice,

mas tão delicioso, que a ferida
no peito transtornado, aceso em festa,
acordava, gravura enlouquecida,
sobre o tempo sem caule, uma promessa.

A manhã sempre-sempre, e dociastutos
eus caçadores a correr, e as presas
num feliz entregar-se, entre soluços.

E que mais, vida eterna, me planejas?
O que se desatou num só momento
não cabe no infinito, e é fuga e vento.

Carlos Drummond de Andrade, em “Amar-Amaro”, no livro “Carlos Drummond de Andrade – Antologia poética” [organizada pelo autor]. 54ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 226.

Crença













Ainda serei eterno.
Não sei quando.
Sei que a sombra se alonga
e eu me alongo,
bólide na erva.

Ainda serei eterno.
Tenho ânsias cativas
no caderno. Cortejo
de símbolos, navios
e nunca mais me encerro
no meu fio.

Ainda serei eterno.
O mês finda, o ano,
o recomeço.
E o fraterno em mim
quer campo, monte, algibe.
Mas sou pequeno
para tanto aceno.

Metáforas me prendem
o eterno
que se pretende isento.

Numa dobra me escondo;
Noutra, deito.
Os nomes me percorrem no poente.
Sou sobrevivente
de alguma alta esfera
que saia de si mesma
e é primavera.

O eterno ainda será viável
como o sol, o dia,
o vento;
misturado ao que me entende
e transborda.
Misturado ao permanente
que me sobra.


Carlos Nejar

Na vitrine






















Partes do corpo
e desvenda os dias

o consumo diário de calmantes,
de refrigerantes, de TV
teu ser egótico
quer um anúncio
publicitário

mas é com satisfação que vê todos os
membros
e sentencia:

limites.


Lilian Aquino - Pequenos afazeres domésticos. São Paulo: Editora Patuá, 2011. 

Partiu-se o sol











Partiu-se o sol
entre nuvens de cobre.
Dos montes azuis chega um ar sonoro.
No prado do céu,
entre flores de estrelas,
a lua vai em crescente
como um garfo de ouro.

Pelo campo (que espera os tropéis de almas),
vou carregado de pena,
pelo caminho só;
porém o meu coração
um raro sonho canta
de uma paixão oculta
a distância sem fundo.

Ecos de mãos brancas
sobre a minha fronte fria,
paixão que se madurou
com pranto de meus olhos!
.

Se ha quebrado el sol


Se ha quebrado el sol
entre nubes de cobre.
De los montes azules llega un aire suave.
En el prado del cielo,
entre flores de estrellas,
va la luna en creciente
como un garfio de oro.

Por el campo (que espera los tropeles de almas),
voy cargado de pena,
Por el camino solo;
Pero el corazón mío
un raro sueño canta
de una pasión oculta
a distancia sin fondo.

Ecos de manos blancas
sobre mi frente fría
¡pasión que maduróse
con llanto de mis ojos!

Federico García Lorca, em “Poemas esparsos”. no livro ‘Obra poética completa’. [tradução de William Agel de Melo]. Brasília: Editora Universidade de Brasília | São Paulo: Martins Fontes, 1989.

À sua espera














No cais eu permaneci durante um longo período
Observei o bailar das gaivotas ao horizonte
Junto a brisa fresca que pairava sobre minha face
Admirei o crepúsculo que adentrava àquela cena sem pedir licença
Reparei intrínseca e calmamente
Na suavidade com que as águas se movimentavam
Formando ondas, horas silenciosas, outras arredias
A perfeição seria alcançada, porém,
Se sobre minhas mãos frias estivessem repousadas as suas
E se o meu corpo fosse acalentado ao enlace de seus abraços.


Vinícius Morésis


Definição
























O corpo é onde
é carne:

o corpo é onde
há carne
e o sangue
é alarme.

O corpo é onde
é chama:

o corpo é onde
há chama
e a brasa
inflama.

O corpo é onde
é luta:

o corpo é onde
há luta
e o sangue
exulta.

O corpo é onde
é cal:

o corpo é onde
há cal
e a dor
é sal.

O corpo
é onde
e a vida
é quando.

Affonso Romano de Sant'Anna   -Publicado no livro Canto e palavra (1965).

In: SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 198













negro no branco
branco no negro

veias
poros
suor
iguais

na morte
os mesmos
pés
juntos

não há raça
há humanos
na
teia
do
tempo
presente


Carlos Orfeu

Quebranto

















às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada

às vezes sou o porteiro
não me deixando entrar em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço

às vezes sou o meu próprio delito
o corpo de jurados
a punição que vem com o veredicto

às vezes sou o amor que me viro o rosto
o quebranto
o encosto
a solidão primitiva
que me envolvo no vazio

às vezes as migalhas do que sonhei e não comi
outras o bem-te-vi com olhos vidrados
trinando tristezas

um dia fui abolição que me lancei de supetão no
espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida uma constituição
que me promulgo a cada instante

também a violência dum impulso
que me ponho do avesso
com acessos de cal e gesso
chego a ser

às vezes faço questão de não me ver
e entupido com a visão deles
me sinto a miséria concebida como um eterno
começo

fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto em que me entrego.

às vezes!...


Cuti  - (Negroesia, p. 53-54).

Crianças negras













Em cada verso um coração pulsando,
Sóis flamejando em cada verso, e a rima
Cheia de pássaros azuis cantando
Desenrolada como um céu por cima.

Trompas sonoras de tritões marinhos
Das ondas glaucas na amplidão sopradas
E a rumorosa musica dos ninhos
Nos damascos reais das alvoradas.

Fulvos leões do altivo pensamento
Galgando da era a soberana rocha,
No espaço o outro leão do sol sangrento
Que como um cardo em fogo desabrocha.

A canção de cristal dos grandes rios
Sonorizando os florestais profundos,
A terra com seus cânticos sombrios,
O firmamento gerador de mundos.

Tudo, como panóplia sempre cheia
Das espadas dos aços rutilantes,
Eu quisera trazer preso à cadeia
De serenas estrofes triunfantes.

Preso à cadeia das estrofes que amam,
Que choram lágrimas de amor por tudo,
Que, como estrelas, vagas se derramam
Num sentimento doloroso e mudo.

Preso à cadeia das estrofes-quentes
Como uma forja em labareda acesa,
Para cantar as épicas, frementes
Tragédias colossais da Natureza.

Para cantar a angústia das crianças!
Não das crianças de cor de oiro e rosa,
Mas dessas que o vergel das esperanças
Viram secar, na idade luminosa.

Das crianças que vêm da negra noite,
Dum leite de venenos e de treva,
Dentre os dantescos círculos do açoite,
Filhas malditas da desgraça de Eva.

E que ouvem pelos séculos afora
O carrilhão da morte que regela,
A ironia das aves rindo a aurora
E a boca aberta em uivos da procela.

Das crianças vergônteas dos escravos
Desamparadas, sobre o caos, à toa
E a cujo pranto, de mil peitos bravos,
A harpa das emoções palpita e soa.

Ó bronze feito carne e nervos, dentro
Do peito, como em jaulas soberanas,
Ó coração! és o supremo centro
Das avalanches das paixões humanas.

Como um clarim a gargalhada vibras,
Vibras também eternamente o pranto
E dentre o riso e o pranto te equilibras
De forma tal que a tudo dás encanto.

És tu que à piedade vens descendo.
Como quem desce do alto das estrelas
E a púrpura do amor vais estendendo
Sobre as crianças, para protegê-las.

És tu que cresces como o oceano, e cresces
Até encher a curva dos espaços
E que lá, coração, lá resplandeces
E todo te abres em maternos braços.

Te abres em largos braços protetores,
Em braços de carinho que as amparam,
A elas, crianças, tenebrosas flores,
Tórridas urzes que petrificaram.

As pequeninas, tristes criaturas
Ei-las, caminham por desertos vagos,
Sob o aguilhão de todas as torturas,
Na sede atroz de todos os afagos.

Vai, coração! na imensa cordilheira
Da Dor, florindo como um loiro fruto
Partindo toda a horrível gargalheira
Da chorosa falange cor do luto.
As crianças negras, vermes da matéria,
Colhidas do suplício a estranha rede,
Arranca-as do presídio da miséria
E com teu sangue mata-lhes a sede!

Cruz e Sousa - (O Livro derradeiro. In: Poesia completa, p.378-381).

Preconceito













— Muitas vezes
a cor da pele
é uma grande parede.

Daí
o abraço frouxo,
o beijo mal dado
e o sorriso amarelo.


Adão Ventura

Vozes-mulheres













A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.

Conceição Evaristo, no livro “Poemas da recordação e outros movimentos”. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

Vozes d'África























Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...

Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
— Infinito: galé! ...
Por abutre — me deste o sol candente,
E a terra de Suez — foi a corrente
Que me ligaste ao pé...

O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do simoun dardeja
O teu braço eternal.

Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos haréns do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Hindustão.

Por tenda tem os cimos do Himalaia...
Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais ...
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
— Pagodes colossais...

A Europa é sempre Europa, a gloriosa! ...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista — corta o mármor de Carrara;
Poetisa — tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã! ...

Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
Ora uma c'roa, ora o barrete frígio
Enflora-lhe a cerviz.
Universo após ela — doudo amante
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz.

....................................

Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada
Em meio das areias esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente;
talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão...

E nem tenho uma sombra de floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador...
Quando subo às Pirâmides do Egito
Embalde aos quatro céus chorando grito:
"Abriga-me, Senhor!..."

Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal que volve
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! dizem: "Lá vai África embuçada
No seu branco albornoz. . . "

Nem vêem que o deserto é meu sudário,
Que o silêncio campeia solitário
Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra
Boceja a Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.

De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim ...
Onde branqueia a caravana errante,
E o camelo monótono, arquejante
Que desce de Efraim

......................................

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?...
E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!
........................................

Foi depois do dilúvio... um viadante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
"Cão! ... serás meu esposo bem-amado...
— Serei tua Eloá. . . "

Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas,
E o nômade faminto corta as plagas
No rápido corcel.

Vi a ciência desertar do Egito...
Vi meu povo seguir — Judeu maldito —
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d'Europa — arrebatada —
Amestrado falcão! ...

Cristo! embalde morreste sobre um monte
Teu sangue não lavou de minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos — alimária do universo,
Eu — pasto universal...

Hoje em meu sangue a América se nutre
Condor que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora
Qual de José os vis irmãos outrora
Venderam seu irmão.

..............................................................

Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p'ra os crimes meus!
Há dois mil anos eu soluço um grito...
Escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!...


Castro Alves

Negro


















Pesa em teu sangue a voz de ignoradas origens.
As florestas guardaram na sombra o segredo da tua história.

A sua primeira inscrição em baixo-relevo
foi uma chicotada no lombo.

Um dia
atiraram-te no bojo de um navio negreiro.
E durante longas noites e noites
vieste escutando o rugido do mar
como um soluço no porão soturno.

O mar era um irmão da tua raça.

Uma madrugada
baixaram as velas do convés.
Havia uma nesga de terra e um porto.
Armazéns com depósitos de escravos
e a queixa dos teus irmãos amarrados em coleiras de ferro.

Principiou aí a sua história.

O resto,
o que ficou para trás,
o Congo, as florestas e o mar
continuam a doer na corda do urucungo. (*)


Raul Bopp
De: “Urucungo: poemas negros” (1932)

Nota:

(*) Instrumento musical africano.

Negro. In: __________. Seleta em prosa e verso. Organização, estudo e notas do Prof. Amariles Guimarães Hill. Rio de Janeiro, GB: Livraria José Olympio Editora; Brasília, DF: Instituto Nacional do Livro - Ministério da Educação e Cultura, 1975. p. 13. (Coleção “Brasil Moço”)

Ferro

















Primeiro o ferro marca
a violência nas costas
Depois o ferro alisa
a vergonha nos cabelos
Na verdade o que se precisa
é jogar o ferro fora
e quebrar todos os elos
dessa corrente
de desesperos.


Cuti

Dever do Poeta
















Àquele que não escuta o mar nesta manhã
de sexta-feira, e encarcerado está dentro de algo,
casa, escritório, fábrica ou mulher,
ou rua ou mina ou árido calabouço...
a esse acorro eu e sem falar nem ver
chego e abro a porta da clausura
e ao abri-la um vago borborinho ouve-se dentro,
um longo trovão desfeito encorpora-se
ao peso do planeta e da espuma,
surgem os rios rumorosos do oceano,
vibra veloz no seu rosal a estrela
e o mar palpita, fenece e continua.

Assim pelo destino conduzido
devo sem descanso ouvir e conservar
o lamento marinho na minha consciência,
devo sentir a pancada violenta da água
e recolhê-la numa taça eterna
para que aonde esteja o encarcerado,
aonde sofra o castigo do Outono
esteja eu presente com uma onda errante,
circule eu através das janelas
e ao ouvir-me o olhar levante
dizendo: como chegarei eu junto do oceano?
Então sem dizer nada transmitirei
os ecos rutilantes da onda,
uma derrocada de espuma e areais,
um sussurro de sal que se afasta,
o grito cinzento da ave do litoral.

E assim, a liberdade e o mar responderão
por mim ao sombrio coração.


Deber del Poeta

A quien no escucha el mar en este viernes
por Ia manana, a quien adentro de algo,
casa, oficina, fábrica o mujer,
o calle o mina o seco calabozo:
a este yo acudo y sin hablar ni ver
llego y abro Ia puerta del encierro
y un sin fin se oye vago en Ia insistência,
un largo trueno roto se encadena
al peso del planeta y de Ia espuma,
surgen los rios roncos del oceano,
vibra veloz en su rosal Ia estrella
y el mar palpita, muere y continua.

Así por el destino conducido
debo sin trégua oír y conservar
el lamento marino en mi conciencia,
debo sentir el golpe de agua dura
y recogerlo en una taza eterna
para que donde esté el encarcelado,
donde sufra el castigo del otoño
yo esté presente con una ola errante,
yo circule a través de Ias ventanas
y al oírme levante Ia mirada
diciendo: como me acercaré al oceano?
Y yo transmitiré sin decir nada
los ecos estrellados de Ia ola,
un quebranto de espuma y arenales,
un susurro de sal que se retira,
el grito gris del ave de Ia costa.

Y así, por mí, Ia libertad y el mar
responderán al corazón oscuro.

Pablo Neruda. 

Deber del poeta / Dever do poeta. Tradução de Luís Pignatelli. In: __________. Plenos poderes. Tradução de Luís Pignatelli. Edição bilíngue. 2. ed. Lisboa, PT: Publicações Dom Quixote, 1977. Em espanhol: p. 14 e 16; em português: p. 15 e 17. (“Poesia Século XX”; n. 8)




Quinze de Novembro


















Deodoro todo nos trinques
Bate na porta de Dão Pedro Segundo.
“- Seu imperadô, dê o fora
que nós queremos tomar conta desta bugiganga.
Mande vir os músicos.”
O imperador bocejando responde
“Pois não meus filhos não se vexem
me deixem calçar as chinelas
podem entrar à vontade:
só peço que não me bulam nas obras completas de Victor Hugo.


Murilo Mendes

Da calma e do silêncio

















Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.

Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.

Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.

Conceição Evaristo, no livro “Poemas da recordação e outros movimentos”. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

Finisterra
















Ando na multidão e o meu nome é Ninguém.
Na cidade que cheira a peixe podre
e gasolina e demagogia
pisado pela tarde vou roçando as escamas
das paredes que cosem a minha dor.
Sob este céu vinagre sugado por turbinas
um vômito de cifras me estonteia.
Levo na maresia o meu amor de homem
e ninguém sabe que amo a não ser os cães
que farejam meus passos pelas alamedas.
No auditório do medo o meu fervor responde
a um estridência de pedras desmoronadas
e nas galerias ouço escorrer
o meu amor de água; e o meu amor de flor
brota nos quiosques pálidos e atravessa
as pedreiras e miçangas do dia enfeitado
de ráfia amarela e branca.
Ó dia, altar dos homens, curral de mármore!
As reses se aproximam tontas do abatedouro
e a sombra do meu querer calcina as calçadas.
Os dias são rufiões ocultos nos balcões
onde ninguém paga os juros de minha alma.
E este amor que me suga enquanto eu sugo
o sumo oculto na gruta insensata
abre uma cratera entre os regos e rochas
da terra que me nutre em seus peitos de pó.
As paliçadas da incerteza se levantam e isolam as torres
onde se revezam as sentinelas que espiam na treva
a chegada dos pelotões invisíveis.
No caminho entre o viaduto e o motel
vou quando venho... Partida e chegada
são quimeras do horizonte e grasnar de gaivotas
que irritam os burocratas na alfândega.
E caminhando pelo Rio vivo de todos os assombros
rede que na treva encontra um cardume de sardinhas
homem que atrás do sol e da alegria se defronta
com os terraços cinzentos da amargura.
A hora faz uma curva de luz para que eu passe
entre os milionários os padres os lixeiros e os palhaços
e as prostitutas que são o
meus semelhantes.

Aqui os bancos são mais belos que as catedrais.
E, cabisbaixos, confiamos aos gerentes os nossos pecados:
cobiçamos a mulher do próximo; e sua mansão; e seu escravo;
e seu iate; e seu boi e jumento;
e suas debêntures,
e o sol de sua piscina.

Comungamos nos guichês. E quando a Bolsa cai
nossas almas monetárias tremem.
Entre o terror e o telestar
e a formiga que sobe a escadaria do Ministério da Fazenda
sinais luminosos se formam. Ó novo glossário do mundo!

Adeus ó velhas palavras que não significam nada
e por um momento boiam nas latrinas.
Como os cemitérios de automóveis, os museus
guardam a sucata.

A arte de hoje está nos tapumes,
nos cartazes que anunciam liquidificadores.
Ó diálogo das constelações, ó sintaxe planetária!
Com as palavras dementes que aprendi na escola
e gastas como as solas dos sapatos
já não sei cantar o mundo nem dizer meu amor.
E o meu silêncio come um pão cozido
nos fornos da mentira.
Ó dia sem lábios
ó dia cheio de escamas como um peixe
que nada em minha jaula
dize-me que céu guardou o grito de Elpenor!
Onde está a sepultura de Nabucodonosor?
Canta para mim, ó Musa, o varão industrioso Nick Carter...

Onde encontrarei todos esses velhos túmulos
com suas lápides partidas e epitáfios
escritos na língua antiga dos mortos?
As trombetas ressoam na esplanada de Elsinor.
Os leões de granito rugem na manhã.
E pisando as palavras amarelas de um outono amarelo
como o corpo de Cristo
vou na multidão de boa lacrada.

Sou um homem isolado dos outros homens
que caminham como se já estivessem mortos.
Nos parques de estacionamento a luz da tarde queima
a relva que me separa dos meus irmãos
neste mundo roído pelo terror.
Eles gritam onde eu não posso escutá-los.
E os ratos roem o pulso de minha alma.
Deitado no horizonte bebo a alvura da noite
que ilumina a fachada dos hospícios.
Ó noite bela como um navio!
Sou o grão
no silo.
Sou o vento
que vem dos subúrbios de urina e querosene
e cega lentamente os olhos das estátuas.
Os gigantes do mundo me perguntam: “Qual é o teu nome?”

E respondo: “Eu me chamo Ninguém”.
Os gigantes jiboiam nos iates ancorados nas ilhas.
A cólera da vida treme nas calçadas.
E o dia se dissolve, impostura
desfeita no ar reverente. E tu que eras gemido e carne
me segues esvaída em minha saliva.
E como os velhos aviões dormem nos hangares
assim durmo em ti e o silêncio é um triunfo
carente de orvalho. E nenhuma valva se contrai
e os peixes se acumulam nas cestas fétidas
dos supermercados diluídos
no puro pasmo das fornicações.
E a minha vida se descasca como aqueles velhos balcões
abertos em Nova Iorque para o esplendor e a mentira.
Sou o que não cabe no alarido
que da rotunda da Bolsa de Valores
sobe para o céu sem sílabas.
No dia bursátil o suor dos homens se muda em números
mas longe de ti só ouço as palavras roucas
que saem de tua garganta visível para o amor.

Ó mulher, esponja do homem,
ocupas toda a paisagem como um pássaro,
o sol nu, ó minha égua cargueira,
passeio pelo teu corpo como uma criança num palácio
e sou a luz dos espelhos que iluminam teu dorso.
Vagueio pelas planícies e colinas ao sol-pôr
espantando os pássaros que ondulam em tuas pálpebras
e enxotando arco-íris.
E junto aos tapumes escarlates da tarde
que bloqueia o cansaço dos homens
vou rastejando na terra quebrada
onde o ódio passa a galope, espalhando a morte.

Ó noite dos semáforos e espantalhos e das
caranguejeiras ocultas nos trapiches
ó noite dos morcegos que em minha infância sustentavam
os estandartes do sonho
as hélices de teus navios carregados de estrelas cruzam
os anfiteatros do mar.
Mas onde está a finisterra que me prometeste, além das ilhas
idiotas e dos mitos corroído
pela maresia?

Como um lustre no teatro quando as luzes se acendem
minha vida inteira estremece ao cair da noite
e ouço na escuridão o cântico de tudo o que parte.

Lêdo Ivo. 


Finisterra. In: __________. Os melhores poemas de Lêdo Ivo. Seleção de Sérgio Alves Peixoto. 2. ed. São Paulo, SP: Global, 1990. p. 62-67. (Série “Os Melhores Poemas”, n. 2)

A alma do vinho






















A alma do vinho assim cantava nas garrafas:
“Homem, ó deserdado amigo, eu te compus,
Nesta prisão de vidro e lacre em que me abafas,
Um cântico em que há só fraternidade e luz!

Bem sei quanto custou, na colina incendida,
De causticante sol, de suor e de labor,
Para fazer minha alma e engendrar minha vida;
Mas eu não hei de ser ingrato e corruptor,

Porque eu sinto um prazer imenso quando baixo
À goela do homem que já trabalhou demais,
E seu peito abrasante é doce tumba que acho
Mais propícia ao prazer que as adegas glaciais.

Não ouves retirar a domingueira toada
E esperanças chalrar em meu seio, febris?
Cotovelos na mesa a manga arregaçada;
Tu me hás de bendizer e tu serás feliz:

Hei de acender-te o olhar da esposa embevecida;
A teu filho farei voltar a força e a cor
E serei para tão tenro atleta da vida
Como o óleo e os tendões enrija ao lutador.

Sobre ti tombarei, vegetal ambrosia,
Grão precioso que lança o eterno Semeador,
Para que enfim do nosso amor nasça a poesia
Que até Deus subirá como uma rara flor!”

.

L’Ame du Vin

Un soir, l’âme du vin chantait dans les bouteilles:
«Homme, vers toi je pousse, ô cher déshérité,
Sous ma prison de verre et mes cires vermeilles,
Un chant plein de lumière et de fraternité!

Je sais combien il faut, sur la colline en flamme,
De peine, de sueur et de soleil cuisant
Pour engendrer ma vie et pour me donner l’âme;
Mais je ne serai point ingrat ni malfaisant,

Car j’éprouve une joie immense quand je tombe
Dans le gosier d’un homme usé par ses travaux,
Et sa chaude poitrine est une douce tombe
Où je me plais bien mieux que dans mes froids caveaux.

Entends-tu retentir les refrains des dimanches
Et l’espoir qui gazouille en mon sein palpitant?
Les coudes sur la table et retroussant tes manches,
Tu me glorifieras et tu seras content;

J’allumerai les yeux de ta femme ravie;
À ton fils je rendrai sa force et ses couleurs
Et serai pour ce frêle athlète de la vie
L’huile qui raffermit les muscles des lutteurs.

En toi je tomberai, végétale ambroisie,
Grain précieux jeté par l’éternel Semeur,
Pour que de notre amour naisse la poésie
Qui jaillira vers Dieu comme une rare fleur!»


Charles Baudelaire, em “Flores das flores do mal de Baudelaire”. [tradução e notas de Guilherme de Almeida; ilustrações de Henri Matisse; apresentação de Manuel Bandeira; posfácio de Marcelo Tápia]. Edição bilíngue. São Paulo: Editora 34, 2010.

Os Trabalhadores do Mundo
























Bate, coração do Mundo,
Bem escuto o teu ritmo,
Os saltos do sangue humano correndo pelas artérias
Do doloroso corpo mapa-múndi.

Os pés em marcha, as máquinas gesticulando,
A terra em seu labor de guerra eterna.

Ímpeto de lutar
Por qualquer coisa que ainda há de acontecer.
Pelo que outrora os sinos repicaram,
Pelo que agora os apitos gritam desesperadamente,
Pela explosão de um sol
Brilhando no aço das lanças e dos cascos
Dos cavaleiros com penachos, sob bandeiras,
Ao lado a procissão misteriosa das sombras no chão,

Marcha de heróis ou leva de prisioneiros?

Dante Milano. Os trabalhadores do mundo. In: __________. Poesias. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1948. p. 75.

Há uma certa inclinação da luz














Há uma certa inclinação da luz,
Nas tardes hibernais,
Que oprime, como o peso
Do eco dos sinos nas catedrais.

Ferida celestial ela nos dá.
Não podemos achar a cicatriz,
Mas a diferença interna,
Do que tem sentido, lá está.

Ninguém pode ensiná-la – ninguém.
Ela é a marca do desespero –
Uma agonia imperial
Que nos é enviada do ar.

Quando ela vem, a paisagem escuta;
As sombras prendem a respiração.
Quando ela vai, é como a distância
No ar da morte.


There’s a certain Slant of light

There’s a certain Slant of light,
Winter Afternoons –
That oppresses, like the Heft
Of Cathedral Tunes –

Heavenly Hurt, it gives us –
We can find no scar,
But internal difference,
Where the Meanings, are –

None may teach it – Any –
’Tis the Seal Despair –
An imperial affliction
Sent us of the Air –

When it comes, the Landscape listens –
Shadows – hold their breath –
When It goes, ’tis lIke the Distance
On the look of Death –

Emily Dickinson. 

Há uma certa inclinação da luz. Tradução de Vera das Neves Pedroso. In: JOHNSON, Thomas H. Mistério e solidão: a vida e a obra de Emily Dickinson. Tradução de Vera das Neves Pedroso. 1. ed. Rio de Janeiro, GB: Lidador, 1965. p. 200-201.

Solilóquio de um visionário



















Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo!

Vestido de hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais…

Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!


Augusto dos Anjos

Nosso Tempo








I

Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

II

Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.

Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.

Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.

A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
e pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.

III

E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?

Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes…
E muitos de vós nunca se abriram.

IV

É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.

É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.

No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.

V

Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.

Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.

Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.
Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor,
confiar-se ao que bem me importa
do sono.

Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiúra,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.

VI

Nos porões da família
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.

VII

Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco? no público? nas poltronas?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.

VIII

O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.

Carlos Drummond de Andrade - Antologia Poética – 12a edição – Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, ps. 109 a 116

Diversonagens suspersas










meu verso, temo, vem do berço.
não versejo porque eu quero,
versejo quando converso
e converso por conversar.
pra que sirvo senão pra isto,
pra ser vinte e pra ser visto,
pra ser versa e pra ser vice,
pra ser a super-superfície
onde o verbo vem ser mais?

não sirvo pra observar.
verso, persevero e conservo
um susto de quem se perde
no exato lugar onde está.

onde estará meu verso?
em algum lugar de um lugar,
onde o avesso do inverso
começa a ver e ficar.
por mais prosas que eu perverta,
não permita Deus que eu perca
meu jeito de versejar.


Paulo Leminski, do livro “Distraído venceremos”. 1987.

simbologia do esquecido













os peixes que esqueci no sonho
que esqueci
não morreram sem comida:
multiplicaram-se

a água pouca e suja
para os peixes muitos
pequenos e vários

alimentei-os


Fabio Rocha

Versos para Minas
















O que me fica de Minas,
mais que o rumo das inconfidências,
são as ossadas azuis distantes de seus montes,
indecifráveis dinossauros férreos
incrustados na vastidão da alma.

Mais que os versos para Bárbara,
o que me encanta de Minas
é um certo ar de inverno impregnando as sombras,
um cheiro de esterco em pastos orvalhados
onde cavalos , insetos e vacas
reinam domínios de silêncios gigantes;

é a beleza modesta, porém eterna,
de suas claras morenas meninas,
os seios de desejos castos arfando;

são restos senhoris dos cafés dos campos,
casas com trepadeiras rubras e limões-cravo
despencando,
um certo abandono, um descomunal cansaço,
uma quase lembrança do que já vivido

e os incansáveis, gentis, negros braços,
o leite pródigo dos úberes,
seiva inteira deste universo Minas transverberado.

Mais que a transparência obscura do nome,
para além de toda forma, o que me fica de Minas
é matiz, é perfume.


Fernando Campanella

O mar e o canavial


















O que o mar sim aprende do canavial:
a elocução horizontal de seu verso;
a geórgica de cordel, ininterrupta,
narrada em voz e silêncio paralelos.
O que o mar não aprende do canavial:
a veemência passional da preamar;
a mão-de-pilão das ondas na areia,
moída e miúda, pilada do que pilar.

*
O que o canavial sim aprende do mar;
o avançar em linha rasteira da onda;
o espraiar-se minucioso, de líquido,
alagando cova a cova onde se alonga.
O que o canavial não aprende do mar:
o desmedido do derramar-se da cana;
o comedimento do latifúndio do mar,
que menos lastradamente se derrama.


João Cabral de Melo Neto, in “Melhores Poemas de João Cabral de Melo Neto”. [Seleção Antônio Carlos Secchin], São Paulo: Global Editora, 8ª ed., 2001, pag. 183.

O Tempo seca o Amor

O tempo seca a beleza, seca o amor, seca as palavras. Deixa tudo solto, leve, desunido para sempre como as areias nas águas. O tempo seca a ...

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