Andorinha













Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…


Manuel Bandeira.

XXXIX















Sinto-me assim
fronteiriça e dual
ora
explodindo como olho d’água
correndo como rio caudaloso
de brava correnteza
ora
exausta como água de remanso
despida de tempo
inerte
à míngua do canto
e da dança dos ventos


XXXIX


Me siento así
al borde y dual
ora
explotando en luz como un espejo de agua
corriendo como río en su caudal
corriente valiente
ora
agotado como remanso
despojado de tiempo
inerte
en la esquina de la esquina
y la danza de los vientos


Wanda Monteiro

Tem textos publicados em revistas literárias como Acrobata, Gueto, InComunidade, Senhoras Obscenas, Mallamargens, Literatura Br. Autora das obras O Beijo da Chuva (Amazônia, 2008), ANVERSO (Amazônia, 2011), Duas Mulheres Entardecendo (parceria com Maria Helena Lattini, Tempo, 2015), Aquatempo (Literacidade, 2016) e A Liturgia do Tempo e outros silêncios (Patuá, 2019). Aquatempo - Aquatiempo lançado em fevereiro(2020) pela Editora Patuá, com tradução para espanhol por Bianca Lourenço Guzzo.

Sísifo
























Recomeça….

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…


Miguel Torga

Bocó























Quando o moço estava a catar caracóis e pedrinhas
na beira do rio até duas horas da tarde, ali
também Nhá Velina Cuê estava. A velha paraguaia
de ver aquele moço a catar caracóis na beira do
rio até duas horas da tarde, balançou a cabeça
de um lado para o outro ao gesto de quem estivesse
com pena do moço, e disse a palavra bocó. O moço
ouviu a palavra bocó e foi para casa correndo
a ver nos seus trinta e dois dicionários que coisa
era ser bocó. Achou cerca de nove expressões que
sugeriam símiles a tonto. E se riu de gostar. E
separou para ele os nove símiles. Tais: Bocó é
sempre alguém acrescentado de criança. Bocó é
uma exceção de árvore. Bocó é um que gosta de
conversar bobagens profundas com as águas. Bocó
é aquele que fala sempre com sotaque das suas
origens. É sempre alguém obscuro de mosca. É
alguém que constrói sua casa com pouco cisco.
É um que descobriu que as tardes fazem parte de
haver beleza nos pássaros. Bocó é aquele que
olhando para o chão enxerga um verme sendo-o.
Bocó é uma espécie de sânie com alvoradas. Foi
o que o moço colheu em seus trinta e dois
dicionários. E ele se estimou


Manoel de Barros

Tempo Verbal




















Eu só quero um presente
E você com esse tal futuro do pretérito.

É um tempo verbal que eu não entendo
É esse o futuro do pretérito
Um tempo verbal enganador.
Ele diria mas não diz.
Ele amaria mas não amará.
É um tempo verbal que ninguém lê
Carregado de condições
Que quase ninguém vê.

Thiago Kuerques - no livro Ensaio dos Poemas Pelados (Poemas com despudor são muito mais sinceros)

Despertares
























Ó despertares de manhãs provincianas
com chamadas para a missa,
em que os sinos vão
lentos ou violentos
conforme a pressa
do sacristão!

Madrugadas em que estão
com sol, unicamente,
a torre paroquial e o campanário;
mas ao meio-dia
as ruas, os subúrbios, como a via,
se atapetam de um ouro coronário.

Compaginadas à janela órfã
à qual a alma não assomará,
porque aquele já não veio,
porque aquele voltou a meio do caminho
e aquele já não virá;
compaginadas vão
as silenciosas sestas
em que o vento não corre.
Tão caladas que se ouve até o arrulho
das pombas lá na torre.

Casamenteiras visões
de amplas casas solteironas:
geleias, e goiabadas
que sabem a mel de abelhas;
suaves doces em calda
guardados na despensa a sete chaves.

O caseiro lindante com o triste:
as histórias caladas,
as janelas fechadas,
o pátio onde a umidade inda persiste,
os corredores amplos e achatados,
gatos intrometidos e mimados,
e canários mais louros do que o alpiste.




Despertares

Despertares de mañanas provincianas
con sus llamadas a misa;
porque las campanas van
lentas o violentas,
según la prisa
del sacristán.

Madrugadas en que están
con el sol, únicamente,
la torre parroquial y el campanario;
pero al medio día,
las calles, los suburbios y la vía
se alfombran con un oro coronario.

Compaginadas a la huérfana ventana
a la que el alma no se asomará;
porque aquello ya no vino,
porque aquello se ha devuelto del camino
y aquello ya no vendrá;
compaginadas van
las silenciosas siestas
en que el viento no corre.
Tan calladas que se oye hasta el arrullo
de las palomas, allá en la torre.

Casamenteras visiones
de casonas solteronas:
las jaleas, los guayabates
que saben a miel de abejas:
almíbares suaves
que el arcón guarda bajo siete llaves.

Lo hogareño lindante con lo triste:
las historias calladas,
las ventanas cerradas,
el patio donde lo húmedo persiste,
los corredores amplios y achatados,
gatos refectoleros y mimados,
y canarios más rubios que el alpiste.


Francisco González León 

Referências: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira - (Seleta e Tradução). Grandes vozes líricas hispanoamericanas. Edição bilíngue. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 97-99.

A Cecília


















Se te beijasse,
seria breve a vida.

Por isso guardo o gesto para depois.

Depois viriam as esperas,
todas ritmadas,
centradas em si mesmas
e nós, mudos, por dentro.

Teu motivo é a rosa,
perdida em tanto afã.

Ouve no vento a sibilante fala
e revela no poema
seu talho à mão.

Nenhum verso te preserva:
estás nua envolta em palavras.

Antes que chegue teu dia,
mais uma vez te esquecerão,
só para se lembrarem,
aflitos,
de que nunca morres:

como não morrem
os motivos da rosa.

Thereza Rocque da Motta - Copacabana, 6/11/2001 – 4h

Soneto XXXVIII

Calíope - musa grega.























Como pode minha Musa inventar seus motivos,
Enquanto vives a derramar em meu verso
Teu doce argumento, sublime demais
Para ser traçado sobre um papel comum?

Ah, agradeça a ti mesma, se em mim
Persiste o alento que se sustenta à tua frente;
Somente o estúpido não poderia te escrever,
Quando tu mesma dás luz à invenção?

Sê a décima musa, dez vezes mais valiosa
Do que as outras nove antigas que os poetas invocam;
E aquele que te chamar, faze com que traga
Eternos versos que vivam por um longo tempo
.
Se à minha leve Musa agradar esses curiosos dias,
Minha será a dor, mas tua será a rima.


Sonnet

How can my muse want subject to invent
While thou dost breathe that pour'st into my verse,
Thine own sweet argument, too excellent,
For every vulgar paper to rehearse?

O give thy self the thanks if aught in me,
Worthy perusal stand against thy sight,
For who's so dumb that cannot write to thee,
When thou thy self dost give invention light?

Be thou the tenth Muse, ten times more in worth
Than those old nine which rhymers invocate,
And he that calls on thee, let him bring forth
Eternal numbers to outlive long date.

If my slight muse do please these curious days,
The pain be mine, but thine shall be the praise.


William Shakespeare - Tradução de Thereza Christina Rocque da Motta.

círculo















atrás das roupas
inquietas no varal

a asa
na mudez do pouso

círculo da
luz
suspensa

na água
trêmula do balde



Carlos Orfeu, nasceu em Queimados, Rio de Janeiro. Publicou Invisíveis cotidianos em 2017 pela editora paraense Literacidade. Nervura em 2019, pela editora Patuá.

E relançou Invisíveis cotidianos em 2020 pela editora Patuá.

Encomenda

















Desejo uma fotografia
como esta — o senhor vê? — como esta:
em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não... Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.

Cecília Meireles - Inserido no livro Vaga Música (1942)

Camden, 1982.














O cheiro do jornal e dos periódicos.
O domingo e seus tédios. A manhã
E na entrevista página essa vã
Publicação de versos alegóricos

De um colega feliz. O homem velho
Está prostrado e branco na decente
Habitação de pobre. Ociosamente
Olha seu rosto no cansado espelho.

Pensa, já sem assombro, que esse cara
É ele. Incerta, a mão acaso toca
A barba turva e a saqueada boca.

Não está longe o fim. Sua voz declara:
Quase não sou, mas os meus versos ritmam
A vida e sua glória. Sou Walt Whitman.

.

CAMDEN, 1982

El olor del café y de los periódicos.
El domingo y su tedio. La mañana
Y en la entrevista página esa vana
Publicación de versos alegóricos

De un colega feliz. El hombre viejo
Está postrado y blanco en su decente
Habitación de pobre. Ociosamente
Mira su cara en el cansado espejo.

Piensa, ya sin asombro, que esa cara
Es él. La distraída mano toca
La turbia barba y saqueada boca.

No está lejos el fin. Su voz declara:
Casi no soy, pero mis versos ritman
La vida y su esplendor. Yo fui Walt Whitman.

Jorge Luis Borges, 
em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

Estrambote melancólico























Tenho saudade de mim mesmo,
saudade sob aparência de remorso,
de tanto que não fui, a sós, a esmo,
e de minha alta ausência em meu redor.
Tenho horror, tenho pena de mim mesmo
e tenho muitos outros sentimentos
violentos. Mas se esquivam no inventário,
e meu amor é triste como é vário,
e sendo vário é um só. Tenho carinho
por toda perda minha na corrente
que de mortos a vivos me carreia
e a mortos restitui o que era deles
mas em mim se guardava. A estrela-d’alva
penetra longamente seu espinho

(e cinco espinhos são) na minha mão.


Carlos Drummond de Andrade, em “Um eu todo retorcido”, no livro “Carlos Drummond de Andrade – Antologia poética” [organizada pelo autor]. 54ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 54.

O Tempo seca o Amor

O tempo seca a beleza, seca o amor, seca as palavras. Deixa tudo solto, leve, desunido para sempre como as areias nas águas. O tempo seca a ...

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