Fevereiro













“Escute só, isto é muito sério.

Anda, escuta que isto é sério.

O mundo está tremendamente esquisito.

Há dez anos atrás o Leo me disse que existe uma rachadura em tudo,

e que é assim que a luz entra.

Não sei se entendi.

Você percebe alguma coisa da mistura entre falhas e iluminação?

Aliás, me diga, você percebe alguma coisa de carpintaria?

Você sabe porque foi que meteram um boi naquele estábulo

em vez de um pequeno rinoceronte?

Deve ter tido alguma coisa a ver com geografia

ou com os infelizmente insolucionáveis mistérios

que só podem vir no misticismo asiático.

Um boi é um bicho tão

inexplicável.

Ainda bem.

O amor é um animal tão mutante,

com tantas divisões possíveis.

Lembra daqueles instrumentos que usávamos na boca

quando éramos pequenininhos?

Lembra da queda deles no chão?

Então, acho que o amor quando aparece é em tudo semelhante

a forma física do mercúrio no mundo.

Quando o vidro do termômetro se quebra

o movimento químico se espalha

e então ele fica se dividindo pelos salões de todas as festas.

O mercúrio se multiplicando…

Acho que deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis

para o amor.

Ah é, eu gosto de você.

A luz entrou torta por nós adentro,

mas olha, eu gosto de você.

A luz do verão passado quebrou o vidro da melancolia

e agora ela fica se expandindo pelas ruas todas.

Desde aquilo o outro lado do sol,

a testa tremendo agora.

Hoje ainda faz bastante frio.

As cinzas ainda não aterraram sobre as cabeças disfarçadas.

Tem gente batucando suor e cerveja pelas ruas da nossa cidade sul.

Na cidade norte, há ondas de sete metros tentando acertar

no terceiro olho dos rapazinhos disfarçados de caubóis.

O mestre ainda não veio decretar o começo da abstenção e,

olha, a luz ainda está conosco.

Sim, o mundo está absurdamente esquisito.

Já ninguém confia nas imposições dos perfeitos.

A esta hora na Terra é metade carnaval, metade conspiração,

metade medo, metade fé,

metade folia, metade desespero.

E provavelmente a esta hora

uma metade do mundo está dançando

e outra metade dormindo.

Há ainda outra metade limpando as armas,

outra limpando o pó das flores.

Mas por causa do que me ensinou o místico,

eu acredito que agora exista alguém profundamente acordado.

Alguém que esteja vivendo no intervalo tênue entre o sono e a agilidade.

Supondo que ele saiba perfeitamente que este começo do século

será nosso batismo de voo para a persistência no amor.

João molhou a testa de Manoel,

os gritos das ruas molham as testas de nossos corações.

De que lado você está eu não me importo.

De que garfo você come,

de que copo você bebe,

que posto 7 você escolhe,

qual é seu orixá, seu partido, sua altura,

de qual das suas cicatrizes você cuida,

que pássaro você prefere,

quem é seu pai, qual é seu samba,

pinot noir ou chardonnay,

que protetor você usa,

qual é sua pele, seu perfume,

qual político.

Quantos amores você sonha

em que Fernando, que Ofélia,

que cinema, que bandeira,

em que cabelo você mora.

Qual dos túneis de Copacabana?

Reze para seus santos quando atravessar.

É, é impossível viver no país de Deus e seu tesouro barato.

Mas atravessar o gramado de Deus em bicicleta,

isso não é impossível não.

Escuta, isto é sério.

Andamos crescendo juntos, distraidamente.

As árvores crescem conosco,

nossa pele se estende, nosso entendimento teso, também.

O século cresce conosco.

O amor pelas ventas da cara do mundo, também.

Quanto ao um pra um entre nós dois, isso logo se vê.

Não sei nada sobre a paixão, suspeito que você também não.

Mas começo a entender que o compasso da festa

vai mudando a passos largos, dois pra lá e dois pra cá.

Portanto, escuta, isto é muito sério.

Isto é uma proposta aos trinta anos.

Agora que o mercúrio assumiu sua posição certa,

vem comigo achar o meu trono mágico entre a folhagem

e no caminho até lá,

vem dançar comigo,

vem.”


Matilde Campilho

Livre
















Livre! Ser livre da matéria escrava,
arrancar os grilhões que nos flagelam
e livre penetrar nos Dons que selam
a alma e lhe emprestam toda a etérea lava.

Livre da humana, da terrestre bava
dos corações daninhos que regelam,
quando os nossos sentidos se rebelam
contra a Infâmia bifronte que deprava.

Livre! bem livre para andar mais puro,
mais junto à Natureza e mais seguro
do seu Amor, de todas as justiças.

Livre! para sentir a Natureza,
para gozar, na universal Grandeza,
Fecundas e arcangélicas preguiças.



Cruz e Souza

Eu-Mulher























Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes – agora – o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.


Conceição Evaristo

Fagulha














Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.



Ana Cristina Cesár

Balada do Amor através das Idades
















Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigámos, morremos.

Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria de meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira...
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.


Carlos Drummond de Andrade

Poemas aos homens do nosso tempo

                             Ilustração por Alexey Kurbatov (Russia)
















Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo.

Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.

O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
“Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas”.
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.

E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto
Não cabe no meu canto.


Hilda Hilst

Felicidade











Se estou só, quero não estar,
Se não estou, quero estar só,
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.

Ser feliz é ser aquele.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que eu quis.

A gente faz o que quer
Daquilo que não é nada,
Mas falha se o não fizer,
Fica perdido na estrada.

Fernando Pessoa, 2-7-1931


Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990). - 48.

Casamento














Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Adélia Prado

Os Corvos

















Gritos de socorro silenciados
Nos suaves cortes na carne
Buscando carinho
Buscando caminhos
Querendo aceitação
Querendo interpretação.

Não pertenço ao mundo
Ao mundo que me deram
Nasci no tempo errado
O tempo é impaciente
E não gosta de improvisos
Já fiz rabiscos nos muros
E em páginas rasgadas
Que só entendem os letrados
Na escuridão.

Um luto bem vivo
Com minhas roupas escuras
Que são meu casulo.
Um luto mais vivo
Do que o eu aprisionado
Alimentados por músicas
E literatura mórbida
O que são corvos?
São apenas pássaros.

Vivo em duas casas diferentes
Mas me perco em todo esse labirinto
Não quero escolhas nem permuta
Quando nasci nunca queria ser borboleta
Só quero voar com minhas penas negras de corvo.

Gosto do alimento com parasitas e insetos
Gosto mais do errado do que do certo
Que para todos são uma mesma coisa.
Só quero voar como um corvo
Na vastidão do céu negro da noite.
Não quero acordar dos meus versos.



Henrique Rodrigues Soares

Dilacerações


















Ó carnes que eu amei sangrentamente,
ó volúpias letais e dolorosas,
essências de heliotropos e de rosas
de essência morna, tropical, dolente…

Carnes, virgens e tépidas do Oriente
do Sonho e das Estrelas fabulosas,
carnes acerbas e maravilhosas,
tentadoras do sol intensamente…

Passai, dilaceradas pelos zelos,
através dos profundos pesadelos
que me apunhalam de mortais horrores…

Passai, passai, desfeitas em tormentos,
em lágrimas, em prantos, em lamentos
em ais, em luto, em convulsões, em dores…



Cruz e Souza

A Coisa Pública e a Privada




















Entre a coisa pública
e a privada
achou-se a República
assentada.

Uns queriam privar
da coisa pública,
outros queriam provar
da privada,
conquanto, é claro,
que, na provação,
a privada, publicamente,
parecesse perfumada.

Dessa luta intestina
entre a gula pública e a privada
a República
acabou desarranjada
e já ninguém sabia
quando era a empresa pública
privada pública
ou
pública privada.

Assim ia a rês pública: avacalhada
uma rês pública: charqueada
uma rês pública, publicamente
corneada, que por mais
que lhe batessem na cangalha
mais vivia escangalhada.

Qual o jeito?
Submetê-la a um jejum?
Ou dar purgante à esganada
que embora a prisão de ventre
tinha a pança inflacionada?

O que fazer?
Privatizar a privada
onde estão todos
publicamente assentados?
Ou publicar, de uma penada,
que a coisa pública
se deixar de ser privada
pode ser recuperada?

— Sim, é preciso sanear,
desinfetar a coisa pública,
limpar a verba malversada,
dar descarga na privada.

Enfim, acabar com a alquimia
de empresas públicas-privadas
que querem ver suas fezes
em ouro alheio transformadas.


Affonso Romano de Sant'Anna. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. Poema integrante da série Aprendizagem de História

No fluxo e refluxo das marés encontra o poeta incentivo para recordar seus males















Seis horas enche e outras tantas vaza
A maré pelas margens do Oceano,
E não larga a tarefa um ponto no ano,
Depois que o mar rodeia, o sol abrasa.

Desde a esfera primeira opaca, ou rasa
A Lua com impulso soberano
Engole o mar por um secreto cano,
E quando o mar vomita, o mundo arrasa.

Muda-se o tempo, e suas temperanças.
Até o céu se muda, a terra, os mares,
E tudo está sujeito a mil mudanças.

Só eu, que todo o fim de meus pesares
Eram de algum minguante as esperanças,
Nunca o minguante vi de meus azares.


Gregório de Matos. Obra poética. Org. James Amado. Prep. e notas Emanuel Araújo. Apres. Jorge Amado. 3.ed. Rio de Janeiro: Record, 1992

Soneto XXIX
















Quando em desgraça, sem sorte e afastado
Dos homens, sozinho, em meu exílio,
Perturbo os Céus surdos, a gritar sem sossego,
E olho para mim, e amaldiçoo meu destino,


Sonhando ser mais afortunado,
Como homem de muitos amigos,
Cobiçando seus talentos e visão,
E aquilo que mais aprecio sinto menos satisfeito;

Mesmo, nesses pensamentos, quase me desprezando,
Feliz, penso em ti – depois em meus bens
(Como a cotovia elevando-se ao romper do dia
Das entranhas da terra), em hinos a louvar o céu;

Pois, lembrar de teu doce amor traz tanta riqueza,
Que desdenho trocar meu dote com reis.



Sonnets

When in disgrace with Fortune and men's eyes,
I all alone beweep my outcast state,
And trouble deaf heaven with my bootless cries,
And look upon my self and curse my fate,

Wishing me like to one more rich in hope,
Featured like him, like him with friends possessed,
Desiring this man's art, and that man's scope,
With what I most enjoy contented least,

Yet in these thoughts my self almost despising,
Haply I think on thee, and then my state,
(Like to the lark at break of day arising
From sullen earth) sings hymns at heaven's gate,

For thy sweet love remembered such wealth brings,
That then I scorn to change my state with kings.


William Shakespeare - Tradução de Thereza Christina Rocque da Motta

Borboletas


















Borboletas me convidaram a elas.
O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas.
Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta seria, com certeza,
um mundo livre aos poemas.
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do ponto de vista de
uma borboleta.
Ali até o meu fascínio era azul.

Manoel de Barros, em “Ensaios fotográficos”, Rio de Janeiro: Record, 2000.

Ode ao Dia Feliz


















DESTA vez deixa-me
ser feliz,
nada aconteceu a ninguém,
não estou em parte alguma,
acontece somente
que sou feliz
pelos quatro lados
do coração, andando,
dormindo ou escrevendo.
O que vou fazer, sou
feliz.
Sou mais inumerável
que o pasto
nas pradarias,
sinto a pele como uma árvore rugosa
e a água abaixo,
os pássaros acima,
o mar como um anel
em minha cintura,
feita de pão e pedra, a terra
o ar canta como um violão.

Tu ao meu lado na areia,
és areia,
tu cantas e és canto,
o mundo
é hoje minha alma,
canto e areia,
o mundo
é hoje tua boca,
deixa-me
em tua boca e na areia
ser feliz,
ser feliz porque sim, porque respiro
e porque tu respiras,
ser feliz porque toco
teu joelho
e é como se tocasse
a pele azul do céu
e seu frescor.

Hoje deixa-me
a mim só
ser feliz,
com todos ou sem todos,
ser feliz
com o pasto
e a areia,
ser feliz
com o ar e a terra,
ser feliz,
contigo, com tua boca,
ser feliz.




ODA AL DÍA FELIZ

ESTA vez dejadme
ser feliz,
nada ha pasado a nadie,
no estoy en parte alguna,
sucede solamente
que soy feliz
por los cuatro costados
del corazón, andando,
durmiendo o escribiendo.
Qué voy a hacerle, soy
feliz.
Soy más innumerable
que el pasto
en las praderas,
siento la piel como un árbol rugoso
y el agua abajo,
los pájaros arriba,
el mar como un anillo
en mi cintura,
hecha de pan y piedra la tierra
el aire canta como una guitarra.

Tú a mi lado en la arena
eres arena,
tú cantas y eres canto,
el mundo
es hoy mi alma,
canto y arena,
el mundo
es hoy tu boca,
dejadme
en tu boca y en la arena
ser feliz,
ser feliz porque si, porque respiro
y porque tú respiras,
ser feliz porque toco
tu rodilla
y es como si tocara
la piel azul del cielo
y su frescura.

Hoy dejadme
a mí solo
ser feliz,
con todos o sin todos,
ser feliz
con el pasto
y la arena,
ser feliz
con el aire y la tierra,
ser feliz,
contigo, con tu boca,
ser feliz.



Pablo Neruda, escrito em Isla Negra. Publicado em “Odas elementales”, em 1954. Tradução livre de Fabio Rocha.

O Amor bate na Porta
















Cantiga do amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito!

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...


Carlos Drummond de Andrade

Alma solitária

















Ó Alma doce e triste e palpitante!
que cítaras soluçam solitárias
pelas Regiões longínquas, visionárias
do teu Sonho secreto e fascinante!

Quantas zonas de luz purificante,
quantos silêncios, quantas sombras várias
de esferas imortais, imaginárias,
falam contigo, ó Alma cativante!

que chama acende os teus faróis noturnos
e veste os teus mistérios taciturnos
dos esplendores do arco de aliança?

Por que és assim, melancolicamente,
como um arcanjo infante, adolescente,
esquecido nos vales da Esperança?!



Cruz e Souza

O guardião dos livros
















Ali estão os jardins, os templos e a justificação dos templos,
A música precisa, as precisas palavras,
Os sessenta e quatro hexagramas,
Os ritos que são a única sabedoria
Que o Firmamento concede aos homens,
O decoro daquele imperador
Cuja serenidade foi refletida pelo mundo, seu espelho,
De modo que os campos davam seus frutos
E as torrentes respeitavam suas margens,
O unicórnio ferido que regressa para marcar o fim,
As secretas leis eternas,
O concerto do orbe;
Essas coisas ou sua memória estão nos livros
Que eu guardo na torre.

Os tártaros vieram do Norte
Em crinudos potros pequenos;
Aniquilaram os exércitos
Que o Filho do Céu mandou para castigar sua impiedade,
Erigiram pirâmides de fogo e cortaram gargantas,
Mataram o perverso e o justo,
Mataram o escravo acorrentado que vigia a porta,
Usaram e esqueceram as mulheres
E seguiram para o Sul,
Inocentes como o animal que é a presa,
Cruéis como punhais.
Na aurora duvidosa
O pai de meu pai salvou os livros.
Aqui estão na torre em que, jazendo,
Recordo os dias que foram de outros,
Os alheios e antigos.

Em meus olhos não há dias. As prateleiras
São muito altas e meus anos não podem alcançá-las.
Léguas de pó e sono circundam a torre.
Para que me enganar?
A verdade é que eu nunca soube ler,
Mas me consolo pensando
Que o imaginado e o passado são iguais
Para um homem que foi
E que contempla o que foi a cidade
E agora volta a ser o deserto.
O que me impede de sonhar que um dia
Eu decifrei a sabedoria
E desenhei com aplicada mão os símbolos?
Meu nome é Hsiang. Sou o que guarda os livros,
Que talvez sejam os últimos,
Porque nada sabemos do Império
E do Filho do Céu.
Ali estão nas altas prateleiras,
Ao mesmo tempo perto e distantes,
Secretos e visíveis como os astros.
Ali estão os jardins, os templos.




El guardián de los libros

Ahí están los jardines, los templos y la justificación de
los templos,
La recta música y las rectas palabras,
Los sesenta y cuatro hexagramas,
Los ritos que son la única sabiduría
Que otorga el Firmamento a los hombres,
El decoro de aquel emperador
Cuya serenidad fue reflejada por el mundo, su espejo,
De suerte que los campos daban sus frutos
Y los torrentes respetaban sus márgenes,
El unicornio herido que regresa para marcar el fin,
Las secretas leyes eternas,
El concierto del orbe;
Esas cosas o su memória están en los libros
Que custodio en la torre.

Los tártaros vinieron del Norte
en crinados potros pequeños;
aniquilaron los ejércitos
que el Hijo del Cielo mandó para castigar su impiedad,
erigieron pirámides de fugo y cortaron gargantas,
mataron al perverso y al justo,
mataron al esclavo encadenado que vigila la puerta,
usaron y olvidaron a las mujeres
y siguieron al Sur,
inocentes como animales de presa,
crueles como cuchillos.
En el alba dudosa
el padre de mi padre salvó los libros.
Aquí están en la torre donde yazgo,
recordando los días que fueron de otros,
los ajenos y antiguos.

En mis ojos no hay días. Los anaqueles
están muy altos y no los alcanzan mis años.
Leguas de polvo y sueño cercan la torre.
¿A qué engañarme?
La verdad es que nunca he sabido leer,
pero me consuelo pensando
que lo imaginado y lo pasado ya son lo mismo
para un hombre que ha sido
y que contempla lo que fue la ciudad
y ahora vuelve a ser el desierto.
¿Qué me impide soñar que alguna vez
descifré la sabiduría
y dibujé con aplicada mano los símbolos?
Mi nombre es Hsiang. Soy el que custodia los libros,
que acaso son los últimos,
porque nada sabemos del Imperio
y del Hijo del Cielo.
Ahí están en los altos anaqueles,
cercanos y lejanos a un tiempo,
secretos y visibles como los astros.
Ahí están los jardines, los templos.


Jorge Luís Borges
En: “Elogio de la sombra” (1969)

Espaço e Tempo


















   Espaço e tempo, barras
da cela
em que a ânima, princesa
encantada,
está fiando, fiando, próximo
às janelas dos olhos (as únicas
aberturas por onde
tende a aflorar, lânguida)

   Espaço e tempo, barras
da cela;
logo as rompereis, e talvez
de imediato, porque cada
mês, hora, instante, corroem-nas
e o pássaro de ouro
perscruta uma fenda para estender as asas!

   A princesa, ladina,
finge fiar; porém aguarda
que uma grade se rompa...
Enquanto que às distantes
estrelas diz: – Amigas,
estendei-me vossa escada
de luz sobre o abismo...

    E as estrelas pálidas
lhe respondem: – Espera,
espera, irmã,
e apresta os teus esforços:
já estendemos a escada.



Espacio y tiempo

   Espacio y tiempo, barrotes
de la jaula
en que el ánima, princesa
encantada,
está hilando, hilando, cerca
de las ventanas
de los ojos (las únicas
aberturas por donde
suele asomarse, lánguida).

   Espacio y tiempo, barrotes
de la jaula;
ya os romperéis, y acaso
muy pronto, porque cada
mes, hora, instante, os mellan,
¡y el pájaro de oro
acecha una rendija para tender las alas!

   La princesa, ladina,
finge hilar; pero aguarda
que se rompa una reja...
En tanto, a las lejanas
estrellas dice: – Amigas,
tendedme vuestra escala
de la luz sobre el abismo...

   Y las estrellas pálidas
le responden: – Espera,
espera, hermana,
y prevén tus esfuerzos:
ya tendemos la escala.


Amado Nervo
Espacio y tiempo. In: PRADA, Carlos García (Comp.). Poesía de España y América. Tomo II. Madrid, ES: Ediciones Cultura Hispánica, 1958. p. 648-649.

Canção de Mim Mesmo - Song of Myself - parte 20



















Quem vai ali? Cheio de realizações, tosco místico, nu;
Como extraio energia da carne que consumo?
O que é um homem afinal? O que sou eu? O que és tu?

Tudo o que marco como sendo meu tu deves compensar
com o que é teu.
De outro modo seria perda de tempo me ouvir.

Não lanço a lamúria da minha lamúria pelo mundo inteiro,
De que os meses são vazios e o chão é lamaçal e sujeira.

Choradeira e servilismo são encontrados junto com os
remédios para inválidos, a conformidade polariza-se
no ordinário mais remoto.
Uso meu chapéu como bem entender dentro ou fora de casa.

Por que eu deveria orar? Por que deveria venerar e ser
cerimonioso?

Tendo inquirido todas as camadas, analisado as minúcias,
consultado os doutores e calculado com perícia,
Não encontro gordura mais doce do que aquela que
se prende aos meus próprios ossos.

Em todas as pessoas enxergo a mim mesmo, em nenhuma
vejo mais do que eu sou, ou um grão de cevada a menos.
E o bem e o mal que falo de mim mesmo eu falo delas.

Sei que sou sólido e sadio.
Para mim os objetos convergentes do universo
perpetuamente fluem,
Todos são escritos para mim, e eu devo entender o que a
escrita significa.

Sei que sou imortal,
Sei que a órbita do meu eu não pode ser varrida pelo
compasso de um carpinteiro,
Sei que não passarei como os círculos luminosos que as crianças
fazem à noite, com gravetos em brasa.


Sei que sou augusto.
Não perturbo meu próprio espírito para que se defenda ou
seja compreendido,
Vejo que as leis elementares nunca pedem desculpas,
(Reconheço que me comporto com um orgulho tão alto
quanto o do nível com que assento a minha casa, afinal).

Existo como sou, isso me basta,
Se ninguém mais no mundo está ciente, fico satisfeito.
E se cada um e todos estiverem cientes, satisfeito fico.

Um mundo está ciente e esse é incomparavelmente o maior
de todos para mim, e esse mundo sou eu mesmo,
E se venho para o que é meu, ainda hoje ou dentro de
dez mil anos, ou dez milhões de anos,
Posso alegremente recebê-lo agora, ou esperá-lo com
alegria igual.

Meus pés estão espigados e encaixados no granito,
Debocho daquilo que chamas de dissolução,
E conheço a amplitude do tempo.



Em Inglês:

20

Who goes there? hankering, gross, mystical, and nude;
How is it I extract strength from the beef I eat?
What is a man anyhow? what am I? what are you?

All I mark as my own you shall offset it with your own,
Else it were time lost listening to me.

I do not snivel that snivel the world over,
That months are vacuums and the ground but wallow and filth.

Whimpering and truckling fold with powders for invalids,
conformity goes to the fourth-remov’d,
I wear my hat as I please indoors or out.

Why should I pray? why should I venerate and be ceremonious?

Having pried through the strata, analyzed to a hair, counsel’d
with doctors and calculated close,
I find no sweeter fat than sticks to my own bones.

In all people I see myself, none more and not one a
barley-corn less,
And the good or bad I say of myself I say of them.

I know I am solid and sound,
To me the converging objects of the universe perpetually flow,
All are written to me, and I must get what the writing means.

I know I am deathless,
I know this orbit of mine cannot be swept by a carpenter’s
compass,
I know I shall not pass like a child’s carlacue cut with a burnt
stick at night.

I know I am august,
I do not trouble my spirit to vindicate itself or be understood,
I see that the elementary laws never apologize,
(I reckon I behave no prouder than the level I plant my
house by, after all.)

I exist as I am, that is enough,
If no other in the world be aware I sit content,
And if each and all be aware I sit content.

One world is aware and by far the largest to me, and that
is myself,
And whether I come to my own to-day or in ten thousand
or tem million years,
I can cheerfully take it now, or with equal cheerfulness
I can wait.

My foothold is tenon’d and mortis’d in granite,
I laugh at what you call dissolution,
And I know the amplitude of time.


Walt Whitman
Canção de mim mesmo: 20. Quem vai ali? Tradução de Luciano Alves Meira. In: __________. Folhas de relva. Texto integral. Tradução e introdução de Luciano Alves Meira. 2. ed. São Paulo (SP): Martin Claret, 2012. p. 66-68. (Série Ouro: Coleção A Obra-Prima de Cada Autor, n. 42)

Saudade


















Saudade de tudo!...
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...

Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...

Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano
afogado no fundo de si mesmo...



João Guimarães Rosa, em 'Magma'.

O Mar dos meus Olhos

















Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens…
Há mulheres que são maré em noites de tardes…
e calma


Sophia de Mello Breyner Andresen

Soneto I














Vós que escutais em rima esparsa o coro
dos suspiros com que eu meu ser nutria,
naquele erro em que jovem me perdia,
quando outro eu era do que sou, e coro:

no vário estilo em que eu razoo e choro
entre esperanças vãs, vã agonia,
onde haja quem do amor provou a via,
se não o seu perdão, piedade imploro.

Mas bem percebo que de todo o povo
fui muito tempo fábula, e frequente
de mim mesmo comigo me envergonho:

do divagar, vergonha é o fruto novo,
e o arrepender-me, e o ver bem claramente
que quanto agrada ao mundo é breve sonho.


Em italiano:

Voi ch'ascoltate in rime sparse il suono
di quei sospiri ond'io nudriva ´l core
in sul mio primo giovenile errore
quand'era in parte altr'uom da quel ch'i' sono,

del vario stile in ch'io piango e ragiono
fra le vane speranze e ´l van dolore,
ove sia chi per prova intenda amore,
spero trovar pietà, non che perdono.

Ma ben veggio or si come alpopol tutto
favola fui gran tempo, onde sovente
di me medesmo meco mi vergogno:

e del mio vaneggiar vergogna è ´l frutto,
e 'l pentersi, e ´l conoscer chiaramente
che quanto piace al mondo è breve sogno.


Francesco Petrarca 
Cancioneiro. Tradução José Clemente Pozenato. Ilustração Enio Squeff. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas, S P: Editora da Unicamp, 2014. 536 p. (Coleção Clássicos Comentados) capa dura. ISBN 978-85-679-2 (Ateliê Editorial) – 978-85-268-1217-8 (Editora da Unicamp)






















a jarra em seu vítreo ventre
guarda a voz azul do voo

o sussurro de água da nuvem
a intangível sede
dos intermináveis corpos

guarda no seu oco ar

o eco das cicatrizes de antanho
e o desesperado
solfejo do passarinho

Carlos Orfeu

Boato

Espalharam por aí que o poema
é uma máquina
                      ou um diadema
que o poema
repele tudo que nos fale à pele
e mesmo a pele
de Hiroxima
que o poema só aceita
a palavra perfeita
ou rarefeita
ou quando muito aceita a palavra neutra
pois quem faz o poema é um poeta
e quem lê o poema, um hermeneuta.

Mas como, gente,
se estamos em janeiro de 1967
e é de tarde
e alguns fios brancos já me surgem no pentelho?
Como ser neutro se acabou de chover e a terra cheira
e o asfalto cheira
e as árvores estão lavadas com suas folhas
e seus galhos
                    existindo?
Como ser neutro, fazer
um poema neutro
se há uma ditadura no país
e eu estou infeliz?

Ora eu sei muito bem que a poesia
não muda (logo) o mundo.
Mas é por isso mesmo que se faz poesia:
porque falta alegria.
E quando há alegria
se quer mais alegria!


Ferreira Gullar
Em: “Dentro da noite veloz” (1962-1975)

Sinfonias do ocaso


















Musselinosas como brumas diurnas
descem do ocaso as sombras harmoniosas,
sombras veladas e musselinosas
para as profundas solidões noturnas.

Sacrários virgens, sacrossantas urnas,
os céus resplendem de sidéreas rosas,
da Lua e das Estrelas majestosas
iluminando a escuridão das furnas.

Ah! por estes sinfônicos ocasos
a terra exala aromas de áureos vasos,
incensos de turíbulos divinos.

Os plenilúnios mórbidos vaporam …
E como que no Azul plangem e choram
cítaras, harpas, bandolins, violinos …


Cruz e Souza

O Tempo seca o Amor

O tempo seca a beleza, seca o amor, seca as palavras. Deixa tudo solto, leve, desunido para sempre como as areias nas águas. O tempo seca a ...

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