Poema dos Dons




































Ninguém rebaixe a lágrima ou censura
Esta declaração da maestria
De Deus, que com magnífica ironia
Me deu mil livros e uma noite escura.

Desta terra de livros fez senhores
A olhos sem luz, que apenas se concedem
Sonhar com bibliotecas e com cores
De insensatos parágrafos que cedem

As manhãs ao seu fim. Em vão o dia
Lhes oferta seus livros infinitos,
Árduos como esses árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.

De fome e sede (narra a história grega)
Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu erro sem cessar pelos confins
Dessa alta e funda biblioteca cega.

Enciclopédias, atlas, o Oriente
E o Ocidente, eras, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam os muros, mas inutilmente.

Lento nas sombras, a penumbra e o nada
Exploro com o báculo indeciso,
Eu, que me figurava o Paraíso
Como uma biblioteca refinada.

Algo, que nomear ninguém se atreva
Com a palavra acaso, arma os eventos;
Outro já recebeu noutros cinzentos
Ocasos os mil livros e esta treva.

Ao errar pelas lentas galerias
Chego a sentir com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, tendo dado
Os mesmos passos pelos mesmos dias.

Qual de nós dois escreve este poema
De um eu plural e de uma mesma mente?
Que importa o verbo que me faz presente
Se é uno e indivisível o dilema?

Groussac ou Borges, olho este querido
Mundo que se deforma e que se apaga
Em uma pálida poeira vaga
Que se parece ao sonho e ao olvido.

.

POEMA DE LOS DONES


Nadie rebaje a lágrima o reproche
Esta declaración de la maestría
De Dios, que con magnífica ironía
Me dio a la vez los libros y la noche.

De esta ciudad de libros hizo dueños
A unos ojos sin luz, que sólo pueden
Leer en las bibliotecas de los sueños
Los insensatos párrafos que ceden

Las albas a su afán. En vano el día
Les prodiga sus libros infinitos,
Arduos como los arduos manuscritos
Que perecieron en Alejandría.

De hambre y de sed (narra una historia griega)
Muere un rey entre fuentes y jardines;
Yo fatigo sin rumbo los confines
De esta alta y honda biblioteca ciega.

Enciclopedias, atlas, el Oriente
Y el Occidente, siglos, dinastías,
Símbolos, cosmos y cosmogonías
Brindan los muros, pero inútilmente.

Lento en mi sombra, la penumbra hueca
Exploro con el báculo indeciso,
Yo, que me figuraba el Paraíso
Bajo la especie de una biblioteca.

Algo, que ciertamente no se nombra
Con la palabra azar, rige estas cosas;
Otro ya recibió en otras borrosas
Tardes los muchos libros y la sombra.

Al errar por las lentas galerías
Suelo sentir con vago horror sagrado
Que soy el otro, el muerto, que habrá dado
Los mismos pasos en los mismos días.

¿Cuál de los dos escribe este poema
De un yo plural y de una sola sombra?
¿Qué importa la palabra que me nombra
Si es indiviso y uno el anatema?

Groussac o Borges, miro este querido
Mundo que se deforma y que se apaga
En una pálida ceniza vaga
Que se parece al sueño y al olvido.


Jorge Luis Borges, 
em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

História antiga

O jardim azevinho - Claude Monet 1877
























No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube por que foi... um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era... Não sabia...

Desde então, transformou-se de repente
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para frente...

Nunca mais nos falamos... vai distante...
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la...


Raul de Leoni

Rio de Janeiro-Lisboa

















um dia você
adora meus óculos
adoro os teus óculos
no dia seguinte
não quero que venhas na fazenda
três dias antes
você ia adorar este lugar
você quer vir até à fazenda?
um dia eu rasgo
o tecido celular do rosto
realizo um sorriso constante
que atravessa o morro
o ponto mágico do morro
rasgão alegre que fulmina
o veio mínimo da folha
de amendoeira
e pelo feixe de luz tropiquente
vai parar na cara de João
vendedor de suco no leblon
em ricochete João grita açaí!
qualquer dia eu vou e chego

no outro dia
a cidade se aborrece
desdignificada pela
gigante roleta
que se chama medo
o urubu fica empoleirado
na trave enferrujada
daquilo que já foi suporte
ao cartaz que anunciava
o novo mundo das piscinas

fosforescentes
o pássaro suspenso
olhando a via rápida
e catando caca
debaixo da unha
temendo o gira girar
da pequena roda
que circula sorte e azar

um dia você
escreve para seus pais
falando sobre o amor
quarenta dias depois
teus pais te escrevem
falando sobre redes de pesca
e o perigo das redes de pesca
um dia você me envia uma carta
depois a outra
o rasgão explode
recordando ainda outra carta
de alguns meses antes
o postal eterno que dizia
still crazy (after all
these years)
faço voto de silêncio
mas na sacralização
horária das avenidas
eu penso que você
sua mãe e seu pai
conversam muito
sobre peixes
e que isso mantém quieta
a roleta negra
e que isso mantém aparada
a unha do urubu
e que isso faz homenagem
a João e à fruta espessa
que brilha vermelha
em cada copo de minha cidade

um dia você diz que me a****
eu a****-te
no dia seguinte
a amendoeira se expande
e floresce cinco folhas mais
nesse dia reparo
que estamos contribuindo
você e eu
para o florestamento da cidade
de duas cidades
faço voto de silêncio
mas na sacralização horária
da respiração eu penso
que apesar da sala de casino
abrigo da gigante roleta do medo
apesar dos golpes de gmt -3
apesar da fita de seda que fica
ondulando sua medida de 7 800 km
estamos dando utilidade ao amor
alargando os braços das amendoeiras
alargando os braços dos jacarandás
partindo as inúteis linhas de fronteira
e fazendo do mundo
a gigante floresta



Matilde Campilho

Fisionomias


















O metrô vai
Carregado de rostos

Este tem uma bolsa
E uma conta para pagar

Aquele tem uma lembrança
Não quer lembrar

Mas o metrô é tão contínuo
Que embala...

E em cada curva
Em cada linha de expressão
Uma história que é a mesma
Para todos

Vá lá, admita,
Somos apegados a detalhes
E é só isso que faz
Rostos diferentes

Aquele outro, tão jovem
Sorri:
Tem um bilhete
E uma inocência.


Adriane Garcia

Soneto XXVIII















Como posso, então, retomar o feliz sofrimento
Ao ser impedido da bênção do descanso,
Quando a opressão do dia não cessa à noite,
Mas se oprime, dia e noite, noite e dia,


E ambos (embora inimigos por natureza)
Consintam em cumprimentar-se para me torturar,
Um por obrigação, o outro, por queixume
De que eu trabalhe ainda mais distante de ti?

Digo ao dia, para agradá-lo, que és luz,
E dou-lhe graças quando as nuvens cobrem o céu;
Assim louvo a escura tez noturna,
Quando as estrelas não brilham e tu refulges sozinha.

Mas o dia prolonga meus pesares,
E a noite faz a tristeza parecer ainda maior.


Sonnets XXVIII

How can I then return in happy plight
That am debarred the benefit of rest?
When day's oppression is not eased by night,
But day by night and night by day oppressed.

And each (though enemies to either's reign)
Do in consent shake hands to torture me,
The one by toil, the other to complain
How far I toil, still farther off from thee.

I tell the day to please him thou art bright,
And dost him grace when clouds do blot the heaven:
So flatter I the swart-complexioned night,
When sparkling stars twire not thou gild'st the even.

But day doth daily draw my sorrows longer,
And night doth nightly make grief's length seem stronger


William Shakespeare - Tradução de Thereza Christina Rocque da Motta

Limites

















Dos caminhos que estendem o poente
Um (não sei qual) há de ser percorrido
A última vez, por mim, indiferente,
E sem que o adivinhe, submetido

A Quem prefixa onipotentes normas
E uma secreta e rígida medida
Às sombras, imaginações e formas
Que destecem e tecem esta vida.

Se para tudo há termino e há compasso
E última vez e nunca mais e olvido,
Quem nos dirá de quem, em nosso espaço,
Sem sabê-lo, nos temos despedido?

Sob o cristal já gris a noite apaga;
Do alto dos livros que um borrão tisnado
Da sombra espalha pela mesa vaga,
Algum deles jamais será folheado.

Há no Sul um portão enferrujado
Com grandes jarras de alvenaria
E tunas que a mim estará vedado
Como se fosse uma litografia.

Para sempre fechaste a porta certa
E há um espelho que te aguarda insano;
A encruzilhada te parece aberta
E a vigília, quadrifonte, Jano.

Entre as memórias sempre existe aquela
Que se perdeu um dia no horizonte;
Não se verão descer àquela fonte
Nem o alvo sol nem a lua amarela.

Não achará tua voz o tom que o persa
Deu à sua língua de aves e de rosas,
Quando ao acaso, ante a luz dispersa,
Queiras dizer as coisas mais preciosas.

E o incessante Ródano e o logo,
Todo o ontem sobre o qual hoje me inclino?
Tão perdido estará como Cartago
Que no fogo e no sal viu o latino.

Creio ouvir na manhã o atarefado
Rumor de uma longínqua multidão.
É tudo o que foi caro e olvidado;
Espaço e tempo e Borges já se vão.

.

LÍMITES

De estas calles que ahondan el poniente,
Una habrá (no sé cuál) que he recorrido
Ya por última vez, indiferente
Y sin adivinarlo, sometido

A quién prefija omnipotentes normas
Y una secreta y rígida medida
A las sombras, los sueños y las formas
Que destejen y tejen esta vida.

Si para todo hay término y hay tasa
Y última vez y nunca más y olvido
¿Quién nos dirá de quién, en esta casa,
Sin saberlo, nos hemos despedido?

Tras el cristal ya gris la noche cesa
Y del alto de libros que una trunca
Sombra dilata por la vaga mesa,
Alguno habrá que no leeremos nunca.

Hay en el sur más de un portón gastado
Con sus jarrones de mampostería
Y tunas, que a mi paso está vedado
Como si fuera una litografía.

Para siempre cerraste alguna puerta
Y hay un espejo que te aguarda en vano;
La encrucijada te parece abierta
Y la vigila, cuadrifronte, Jano.

Hay, entre todas tus memorias, una
Que se ha perdido irreparablemente;
No te verán bajar a aquella fuente
Ni el blanco sol ni la amarilla luna.

No volverá tu voz a lo que el persa
Dijo en su lengua de aves y de rosas,
Cuando al ocaso, ante la luz dispersa,
Quieras decir inolvidables cosas.

¿Y el incesante Ródano y el lago,
Todo ese ayer sobre el cual hoy me inclino?
Tan perdido estará como Cartago
Que con fuego y con sal borró el latino.

Creo en el alba oír un atareado
Rumor de multitudes que se alejan;
Son lo que me ha querido y olvidado;
Espacio y tiempo y Borges ya me dejan.

Jorge Luis Borges, 
em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.















azulejos brancos
cardumes de passos
anoitecidos

no canto da varanda
por onde formigas
brotam como fachos negros

e canibalizam o feto da chuva
na casca da cigarra morta

Carlos Orfeu

Soneto tremente
















Sou o dos desesperos enfadados.
Há na minh’ alma hortências a fluir.
Se eu pudesse deixar os meus cuidados
Ia-me repousar, ia dormir!

Pressentem-se na luz uns flébeis fados
Como coisa que em breve vai cair…
Eu sinto a dor dos ser’s inanimados.
Eu sinto tudo o que quiser sentir!

Esta sede sem fim de analisar
Acaba sempre em pré-neurastenia.
- Não mais me comover! Não mais pensar!

Fechar os olhos, sem força, parar…
- Que bom viver um sono de água fria,
Com a alma meia morta, a desfocar...



Cristovam Pavia

On The Turning Away - Ao Virar as Costas













Ao virar as costas
Aos pálidos e oprimidos
E as palavras que eles dizem
Que não iremos entender
Não aceite que o que está acontecendo
É só um caso do sofrimento alheio
Ou você perceberá que está se juntando
Ao virar de costas

É um pecado que de alguma forma
A luz esteja virando sombra
E jogando sua mortalha
Em tudo que sabíamos
Sem notar como os níveis aumentaram
Levados por um coração de pedra
Perceberíamos que estamos todos sozinhos
No sonho dos orgulhosos

Nas asas da noite
Enquanto os dias tremem
Onde os calados se unem
Num acorde silencioso
Usando palavras que você achará estranhas
E fascinado como eles acendem a chama
Sinta o novo vento da mudança
Nas asas da noite

Não mais dar as costas
Ao fraco e ao exausto
Não mais dar as costas
À frieza interior
Apenas um mundo que todos nós devemos compartilhar
Não é suficiente parar e olhar
É apenas um sonho que haverá
Não virar mais as costas?


Em inglês

On the turning away
From the pale and downtrodden
And the words they say
Which we won't understand
Don't accept that what's happening
Is just a case of others' suffering
Or you'll find that you're joining in
The turning away

It's a sin that somehow
Light is changing to shadow
And casting it's shroud
Over all we have known
Unaware how the ranks have grown
Driven on by a heart of stone
We could find that we're all alone
In the dream of the proud

On the wings of the night
As the daytime is stirring
Where the speechless unite
In a silent accord
Using words you will find are strange
And mesmerised as they light the flame
Feel the new wind of change
On the wings of the night

No more turning away
From the weak and the weary
No more turning away
From the coldness inside
Just a world that we all must share
It's not enough just to stand and stare
Is it only a dream that there'll be
No more turning away?


Anthony Moore / David Gilmour - Pink Floyd

Ainda não













I
Ainda não…
É a espera.
Afirmação
do tempo que vai chegar
no tempo que está passando.

II
Ainda não…
É a promessa.
Certeza
do tempo de querer
no tempo que vai chegando.
A mulher é a terra —
terra de semear.

III
Ainda não…
O tempo disse dormindo:
Por que esperar?
Plantar, colher
no amanhecer.
Não retardar o instante
maravilhoso da colheita.

IV
Veio o semeador,
semearam juntos
e colheram
o encantamento do fruto.
Lamentaram juntos
Retardamos tanto… no tempo.


Cora Coralina

Ao Tempo
















Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,

Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida

A um tempo aproximando e distanciando...
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando

Tempo, vais para diante ou para trás?


Dante Milano

Criação























Te criei como crio tantos personagens
Pus em você pitadas de festim
Te fazia dançar feliz nos sonhos
Pus em você o sorriso que gosto de ver
Te criei livre de anseios
Te fiz solto nos devaneios
Te fiz com gosto de dias que não chove no
chão
Acho que foi aí que fiz confusão
Agora que começaram as chuvas de verão,
Não vejo mais as sombras de teus passos 
no chão.


Perla de Castro - Estesia - Editora Litere-se

Tempo de Poesia























Todo o tempo é de poesia.

Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.

Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia.

Todo o tempo é de poesia.

Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram
Vidas que a amar se consagram

Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.

Todo o tempo é de poesia.

Desde a arrumação do caos
à confusão da harmonia.

António Gedeão
Em: “Movimento Perpétuo” (1956)

É o vento














É o vento que vem uivando
pelas frinchas do infinito
é o vento que vem gemendo
na espinha do plenilúnio
é o vento que vem rolando
como um cascalho de treva

É o vento que vem quebrando
as vidraças do silêncio
é o vento que vem abrindo
as cicatrizes da véspera
é o vento que vem pulsando
nas veias murchas do tempo

É o vento que vem mordendo
a carne tenra das nuvens
é o vento que vem regendo
a sinfonia das águas
é o vento que vem varrendo
a nostalgia dos túmulos

É o vento que vem trazendo
teu sorriso embalsamado
é o vento que vem despindo
a salsugem de teus seios
é o vento que vem moldando
tua gótica nudez

É o vento que vem brincando
de roda com minha infância
é o vento que vem tangendo
meus pensamentos sem rumo
é o vento que vem traçando
o mapa de minha face

É o vento que vem roendo
o pergaminho das horas
que monótonas gotejam
sobre as escarpas herméticas
do abismo turvo insondável
que me separa de mim


Ivan Junqueira

Chão de Giz






















Eu desço dessa solidão
Espalho coisas
Sobre um Chão de Giz
Há meros devaneios tolos
A me torturar
Fotografias recortadas
Em jornais de folhas
Amiúde!

Eu vou te jogar
Num pano de guardar confetes
Eu vou te jogar
Num pano de guardar confetes

Disparo balas de canhão
É inútil, pois existe
Um grão-vizir
Há tantas violetas velhas
Sem um colibri
Queria usar, quem sabe
Uma camisa de força
Ou de vênus

Mas não vou gozar de nós
Apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar
Gastando assim o meu batom

Agora pego
Um caminhão na lona
Vou a nocaute outra vez
Pra sempre fui acorrentado
No seu calcanhar
Meus vinte anos de boy
That's over, baby!
Freud explica

Não vou me sujar
Fumando apenas um cigarro
Nem vou lhe beijar
Gastando assim o meu batom

Quanto ao pano dos confetes
Já passou meu carnaval
E isso explica porque o sexo
É assunto popular

No mais, estou indo embora!
No mais, estou indo embora!
No mais, estou indo embora!
No mais!


Zé Ramalho

Mudança de Idade




















Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores nocturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.

Mia Couto
No livro “Tradutor de chuvas”

Stand By Me - Fique Comigo
















Quando a noite chegar
E a terra ficar escura
E o luar
For a única luz que se vê

Não, não vou ter medo
Oh, eu não vou ter medo
Enquanto você ficar
Ficar comigo

Então, querida, querida, fique comigo
Oh, fique comigo
Oh, fique, fique comigo
Fique comigo

Se o céu que contemplamos
Se despedaçar e cair
Ou a montanha
Desmoronar até ao mar

Não vou chorar, não vou chorar
Não, eu não vou derramar uma lágrima
Enquanto você ficar
Ficar comigo

E, querida, querida, fique comigo
Oh, fique comigo
Woah, fique agora
Fique comigo, fique comigo

Querida, querida, fique comigo
Oh, fique comigo
Oh, fique agora
Fique comigo, fique comigo

Sempre que tiver problemas
Fique comigo
Oh, fique comigo
Woah, fique agora
Oh, fique comigo


Em inglês:


When the night has come
And the land is dark
And the moon
Is the only light we'll see

No, I won't be afraid
Oh, I won't be afraid
Just as long as you stand
Stand by me

So, darlin', darlin', stand by me
Oh, stand by me
Oh, stand, stand by me
Stand by me

If the sky that we look upon
Should tumble and fall
Or the mountain
Should crumble to the sea

I won't cry, I won't cry
No, I won't shed a tear
Just as long as you stand
Stand by me

And, darlin', darlin', stand by me
Oh, stand by me
Woah, stand now
Stand by me, stand by me

Darlin', darlin', stand by me
Oh, stand by me
Oh, stand now
Stand by me, stand by me

Whenever you're in trouble
Won't you stand by me
Oh, stand by me
Woah, stand now
Oh, stand by me

Composição: Ben E. King / Jerry Leiber / Mike Stoller - Intérprete: John Lennon

Ao Sal
















Nega-me tua alma –
Esta minha alma mesma
Que me furtas -
E é o degredo irremediável
que, em troca, me concedes.
Nega – me tua chama
Que tremula no delírio dos deuses,
Teu anjo, que ressona no silêncio dos lagos,
Nega-me, nega-me tua espuma
Que regurgita no sonho das aves
(eu sou o teu infante pássaro)
E é sem minhas fontes que me deixas,
Sem meu ar extasiado.
Nega-me teu mar, tua tempestade,
O sonho e a fantasia,
E me deixas a seco ,ao sal amargo
De cada dia.
Nega-me teu olhos e já triste não me enxergo
Que a felicidade, embora utopia das sombras,
É também certa luz incidente
Que só de teu olhar
meus olhos como bênção recebem.


Fernando Campanella

Xadrez














I

Em seu grave rincão, dois jogadores
Regem peças, sem pausa. O tabuleiro
Os prende até a aurora no certeiro
Âmbito em que se odeiam duas cores.

Dentro irradiam mágicos rigores
As formas: torre homérica, ligeiro
Cavalo, audaz rainha, rei guerreiro,
Bispo oblíquo e peões ameaçadores.

Quando os rivais já se tiverem ido,
Quando o tempo os houver já consumido,
Por certo não terá cessado o rito.

O Oriente é a origem dessa guerra
Cujo anfiteatro é hoje toda a terra.
Como o outro, este jogo é infinito.

II

Tênue rei, bispo em viés, encarniçada
Rainha, torre à frente e peão alerta
No branco e negro de uma estrada incerta
Buscam e travam a batalha armada.

Não sabem que da mão predestinada
Do jogador depende o seu destino,
Nem sabem que um rigor adamantino
Sujeita-lhes o arbítrio e a jornada.

Também o jogador é prisioneiro
(Segundo Omar) de um outro tabuleiro
De negras noites e de brancos dias.

Deus move o jogador, e este, a peça.
Que Deus atrás de Deus a trama começa
De pó e tempo e sonho e agonias?

.

AJEDREZ
I

En su grave rincón, los jugadores
Rigen las lentas piezas. El tablero
Los demora hasta el alba en su severo
Ámbito en que se odian dos colores.

Adentro irradian mágicos rigores
Las formas: torre homérica, ligero
Caballo, armada reina, rey postrero,
Oblicuo alfil y peones agresores.

Cuando los jugadores se hayan ido,
Cuando el tiempo los haya consumido,
Ciertamente no habrá cesado el rito.

En el Oriente se encendió esta guerra
Cuyo anfiteatro es hoy toda la Tierra.
Como el otro, este juego es infinito.

II

Tenue rey, sesgo alfil, encarnizada
Reina, torre directa y peón ladino
Sobre lo negro y blanco del camino
Buscan y libran su batalla armada.

No saben que la mano señalada
Del jugador gobierna su destino,
No saben que un rigor adamantino
Sujeta su albedrío y su jornada.

También el jugador es prisionero
(La sentencia es de Omar) de otro tablero
De negras noches y de blancos días.

Dios mueve al jugador, y éste, la pieza.
¿Qué Dios detrás de Dios la trama empieza
De polvo y tiempo y sueño y agonía?

Jorge Luis Borges
em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

Soneto X

















Vou partir, vais ficar. “Longe da vista, 
longe do coração” — diz o ditado. 
Basta, porém, que o nosso amor exista, 
para que eu parta e fiques sem cuidado. 

Dentro em mim mesmo, o coração egoísta, 
quanto mais longe, mais te quer ao lado; 
tanto mais te ama, quanto mais te avista 
e, antes de ver-te, já te havia amado. 

Vou partir. Para longe? Para perto? 
— Não sei: longe de ti tudo é deserto 
e todas as distâncias são iguais. 

Como eu quisera que, na despedida, 
quando se unissem nossas mãos, querida, 
nunca pudessem desunir-se mais!

Guilherme de Almeida

Da obra original “Nós” (1914-1917).
Extraído de Sonetos/ Guilherme de Almeida, Imprensa Oficial,
São Paulo (SP) Brasil, 2ª edição, pág. 24.

Genealogia do Amor

















E assim se fez verbo
o dom da palavra
para repartir-se
porque ele era só.

Da vértebra curva
veio para ouvir
aquela que se houve
para ser ouvida
na aventura a dois:
chamada Mulher
a chamado do Homem.

O primeiro grito
– parto da palavra –
se faz em sussurro
macio de gozo
veludo de ventos.

Aníbal Beça

Soneto XXVII















Cansado do trabalho, corro ao leito
Para repousar meus membros exaustos de viagem;
No entanto, inicia-se uma jornada em minha mente,
Depois que a atividade de meu corpo cessa:

Assim, meus pensamentos (vindos de muito longe)
Começam uma lenta peregrinação até onde estás,
E fazem que meus olhos sonolentos não se fechem,
Encarando o negror que os cegos veem:

Exceto que a visão imaginária de minh’alma
Traz tua sombra invisível,
Que, como uma joia suspensa no escuro,
Adorna a noite turva, a renovar seus traços.

Vê! Assim, de dia, as pernas e, à noite, a mente,
Nem por mim, nem por ti, encontram paz.



Sonnets

Weary with toil, I haste me to my bed,
The dear respose for limbs with travel tired,
But then begins a journey in my head
To work my mind, when body's work's expired.

For then my thoughts (from far where I abide)
Intend a zealous pilgrimage to thee,
And keep my drooping eyelids open wide,
Looking on darkness which the blind do see.

Save that my soul's imaginary sight
Presents thy shadow to my sightless view,
Which like a jewel (hung in ghastly night)
Makes black night beauteous, and her old face new.

Lo thus by day my limbs, by night my mind,
For thee, and for my self, no quiet find.

William Shakespeare - Tradução de Thereza Christina Rocque da Motta

Bilhete
















Nada me dês nem peças.
E não meças
O que podias dar e receber.
Fecha a própria riqueza do teu ser.

Um de nós era a mais
À lírica janela…
Olharam-se os zagais,
Mas não houve novela.

A vida assim o quis,
A vida sem amor.
Não regues a raiz
Do que não teve flor.

Miguel Torga

TEOREMA DOS PLANETAS

















Antes de tudo, te observo em órbita
Te convoco a soltar o pés do solo
De pronto, te abraço em meu colo
Antes que atropele a minha fala

Junto aos passos que você coreografa
Escorrego enquanto você me agarra
Pra que a gente veja estrelas em cascata
Peço ao céu pra abençoar nosso destino

Se a gente patina
na rotina insana
Brinca de cai-levanta
Faz do deslize a dança
Conserva sempre
O encanto nas retinas

Quando as luzes se fundem
A gente sempre tá junto
E o universo imenso
Soma o manso e o tenso

Faz parar o tempo
Bem no momento
Do nosso encontro

Eu que pouco falo, bailo
Pra que até a lua veja
E os planetas giram em ciclo
Do universo em equilíbrio
E até os pombinhos miram
Quando a gente se beija


Alan Salgueiro

Aos que falharam














Aos que falharam, grandes na aspiração,
aos soldados sem nome caídos na vanguarda do combate,
aos calmos e esforçados engenheiros, aos pilotos nos barcos,
aos super-ardorosos viajantes,
a tão sublimes cantos e pinturas sem reconhecimento
– eu gostaria de erguer um momento coberto de louros
alto, bem alto, acima dos demais:
A todos os truncados antes do tempo,
arrebatados por algum estranho espírito de fogo,
tocados por morte prematura.

.

To Those Who’ve Fail’d. 


To those who’ve fail’d in aspirations vast,
To unnamed soldiers, fall’n in front, on the lead,
To calm, devoted engineers, to over ardent
travellers, to pilots on their ships,
To many a song and picture without parturition,
I’d rear a laurel cover’d monument
High, high above the rest—to all cut off before
their time,
Possess’d by some great spirit of fire
Quenched by an early death.

Walt Whitman, 
em “Folhas de Relva”. [seleção e tradução Geir Campos; ilustrações Darcy Penteado]. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1964; 2002.

Frente ao mar



















1
Chove no mar.
Ao mar o que é do mar
e que as herdades sequem.

2
A onda não tem forma?
Num instante se esculpe,
no outro se desmorona
à que emerge, redonda.
Seu movimento é forma.

3
As ondas se retiram
– ancas, espáduas, nucas –
logo voltam as ondas
-peitos, bocas, espumas.

4
Morre de sede o mar.
Se retorce, sozinho,
em sua cama de rochas.
Morre de sede de ar.

.

Frente al mar
1
Llueve en el mar:
al mar lo que es del mar
y que se seque la heredad.

2
¿La ola no tiene forma?
En un instante se esculpe
y en otro se desmorona
en la que emerge, redonda.
Su movimiento es su forma.

3
Las olas se retiran
—ancas, espaldas, nucas—
pero vuelven las olas
—pechos, bocas, espumas—.

4
Muere de sed el mar.
Se retuerce, sin nadie,
en su lecho de rocas.
Muere de sed de aire.


Octavio Paz, 
em “Transblanco: em Torno a Blanco de Octavio Paz”. [tradução Haroldo de Campos]. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

Amo as horas noturnas























Amo as horas noturnas do meu ser em
que se me aprofundam os sentidos;
nelas fui eu achar, como em cartas velhíssimas,
já vivida a vida dos meus dias
e como lenda longínqua e superada.

Delas eu aprendi que tenho espaço
para uma segunda vida, vasta e sem tempo.

E por vezes me sinto como a árvore
que, madura e rumorosa, sobre uma campa
realiza o sonho que o menino foi
(em volta do qual apertam suas raízes quentes)
e perdeu em tristezas e canções.


Em alemão:

Ich liebe meines Wesens Dunkelstunden


Ich liebe meines Wesens Dunkelstunden,
in welchen meine Sinne sich vertiefen;
in ihnen hab ich, wie in alten Briefen,
mein täglich Leben schon gelebt gefunden
und wie Legende weit und überwunden.

Aus ihnen kommt mir Wissen, daß ich Raum
zu einem zweiten zeitlos breiten Leben habe.

Und manchmal bin ich wie der Baum,
der, reif und rauschend, über einem Grabe
den Traum erfüllt, den der vergangne Knabe
(um den sich seine warmen Wurzeln drängen)
verlor in Traurigkeiten und Gesängen.


Rainer Maria Rilke, 
em "Poemas, As elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu". [tradução Paulo Quintela]. Lisboa: Edições Asa, 2001.

O Rouxinol

























Como tu cantas pequeno rouxinol
Te soltas pela liberdade que procuras
Na paz solitária das matas
Como nas notas que levam as alturas

Como tu cantas, doce rouxinol
O teu dom, a tua ternura
Não ser prende, nem se mata
São tua pele, tua alma e textura

Que saudade terei de ti, rouxinol.
Mas quem voa, os ninhos são passageiros.
A vida uma floresta com diferentes roteiros
E o teu canto levo no ouvido suave e sereno

Vai-te querido rouxinol
Enche teu peito solta o teu canto
Para que um dia encantado
Por sua melodia possa novamente te encontrar.

Henrique Rodrigues Soares
Para Querida Amiga Arlete Maia.

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