No Ombro das Coisas






























Como recolher-te, povo,no ombro das coisas?

Preciso juntar tua bandeira
no caminho
do sol, das oliveiras.

Preciso recolher-te
onde não minto
e sou rebelde.

Pão.
Prego, espectro.
A alma imortal
e a outra alma
que é povo.

Casaco batido e longo,
o tempo se adivinha.
Tu também te adivinhas
cada manhã, embora
em fatias. A aurora
te adivinha na pura
distração, sem nuvem.
O menino ao nascer te adivinha
e é o mundo
chorando, adivinhando
o outro lado. O escuro.
É teu lábio: respiras.

Em cacos teu espelho.
Em cacos e sementes.
Já viajam sem ver-te.

E vão-se estilhaços
de ti, vão-se de braços
com o ar, as horas todas.
E o meu velho desespero.

O povo é remo
e a pátria, imóvel barco.

Teus fragmentos viajam
absurdos, indomáveis
e recolher-te, faz-me
nascer de novo.

Bendito seja o teu fruto,
América. Bendito seja
o ventre que tanto amei
e escuto pulsar, povo.
Teu fruto
no pomar da memória.

Quero-te inteiro. Ouso
por ti sofrer.
Vou recolher-te, fio
a fio. Medo a medo.
E quando fores completo,
virás me recolher.


Carlos Nejar 

Publicado no livro Árvore do mundo (1977).

In: NEJAR, Carlos. A genealogia da palavra. Introd. Eduardo Portella. São Paulo: Iluminuras, 1989. p.113-11

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