No Ombro das Coisas






























Como recolher-te, povo,no ombro das coisas?

Preciso juntar tua bandeira
no caminho
do sol, das oliveiras.

Preciso recolher-te
onde não minto
e sou rebelde.

Pão.
Prego, espectro.
A alma imortal
e a outra alma
que é povo.

Casaco batido e longo,
o tempo se adivinha.
Tu também te adivinhas
cada manhã, embora
em fatias. A aurora
te adivinha na pura
distração, sem nuvem.
O menino ao nascer te adivinha
e é o mundo
chorando, adivinhando
o outro lado. O escuro.
É teu lábio: respiras.

Em cacos teu espelho.
Em cacos e sementes.
Já viajam sem ver-te.

E vão-se estilhaços
de ti, vão-se de braços
com o ar, as horas todas.
E o meu velho desespero.

O povo é remo
e a pátria, imóvel barco.

Teus fragmentos viajam
absurdos, indomáveis
e recolher-te, faz-me
nascer de novo.

Bendito seja o teu fruto,
América. Bendito seja
o ventre que tanto amei
e escuto pulsar, povo.
Teu fruto
no pomar da memória.

Quero-te inteiro. Ouso
por ti sofrer.
Vou recolher-te, fio
a fio. Medo a medo.
E quando fores completo,
virás me recolher.


Carlos Nejar 

Publicado no livro Árvore do mundo (1977).

In: NEJAR, Carlos. A genealogia da palavra. Introd. Eduardo Portella. São Paulo: Iluminuras, 1989. p.113-11

Cantaremos




Ao longo de longos séculos da história

Foste o continente do ouro e do sabão
E teus filhos os filhos da fome e do chocote

Em tempos muitos que já lá vão
Em tuas terras floresceram as riquezas
E teus filhos
( então filhos do tam-tam e do sol)
viveram a felicidade do não à exploração

então vieram caravelas
trazendo homens de cor estranha
( e estranhos pensamentos )
que cobiçaram a força simples
dos teus filhos perfeitos

e descendo um a um
os degraus do vicio da corrupção e da traição
começaram a comprar e vender teus filhos
não mais homens
não mais africanos
abjectamente escravos

barracões
navios negreiros
porões
sol suor chicote morte
e homens animais
( sub-homens )
é tudo o que de ti narra a história
nessa época de genocídio em solo africano

até que a escravatura passou
( os escravos porém ficaram )

ouro diamante petróleo
teu solo era rico
e homens cada vez mais abjectos
cada vez mais queriam possuir teus bens

e ficou-nos
( gravada a ferro e fogo)
a memória do colonialismo
abismo sem fim de miséria servidão e ultraje

os anos rolaram sobre ti
continente exangue
até que o vento da revolução
soprou forte sobre o mundo

por ti
bandung deu o sinal
anunciando grandes mudanças
para as terras martirizadas de África

depois
teus filhos foram quebrando
as amarras que os prendiam
e
um a um
voltaram para ti
destruindo à passagem
os mitos que os opressores criaram
para que os pudessem
impunes
dominar

eis-nos agora África
os povos da guiné e caboverde
dos últimos dos teus filhos cativos

para nós a hora soou
quando o nosso povo gerou Cabral
e viu correr o sangue de pidjiguiti

eis-nos aqui África
e de joelhos sobre esta terra mártir
por ti
por nós
por todos
cantaremos hinos de louvor e esperança


Vera Duarte

Convívio

Theo-Szczepanski-Jornal-Rascunho


















Cada dia que passa incorporo mais esta verdade, de que eles não vivem senão em nós
e por isso vivem tão pouco; tão intervalado; tão débil.
Fora de nós é que talvez deixaram de viver, para o que se chama tempo.
E essa eternidade negativa não nos desola.
Pouco e mal que eles vivam, dentro de nós, é vida não obstante.
E já não enfrentamos a morte, de sempre trazê-la conosco.

Mas, como estão longe, ao mesmo tempo que nosso atuais habitantes
e nossos hóspedes e nossos tecidos e a circulação nossa!
A mais tênue forma exterior nos atinge.
O próximo existe. O pássaro existe,
E eles também existem, mas que oblíquos! e mesmo sorrindo, que disfarçados…

Há que renunciar a toda procura.
Não os encontraríamos, ao encontrá-los.
Ter e não ter em nós um vaso sagrado,
um depósito, uma presença contínua,
esta é nossa condição, enquanto,
sem condição, transitamos
e julgamos amar
e calamo-nos.

Ou talvez existamos somente neles, que são omissos, e nossa existência,
apenas uma forma impura de silêncio, que preferiram.


Carlos Drummond de Andrade, 

em “A família que me dei”, no livro “Carlos Drummond de Andrade – Antologia poética” [organizada pelo autor]. 54ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 98.

O Tempo seca o Amor

O tempo seca a beleza, seca o amor, seca as palavras. Deixa tudo solto, leve, desunido para sempre como as areias nas águas. O tempo seca a ...

Nos últimos 30 dias.