À sombra das araucárias

















Não aprofundes o teu tédio. 
Não te entregues à mágoa vã.
O próprio tempo é o bom remédio:
Bebe a delícia da manhã.

A névoa errante se enovela
Na folhagem das araucárias.
Há um suave encanto nela
Que enleia as almas solitárias…

As coisas tem aspectos mansos.
Um após outro, a bambolear,
Passam, caminho dágua, os gansos.
Vão atentos, como a cismar…

No verde, à beira das estradas,
Maliciosas em tentação,
Riem amoras orvalhadas.
Colhe-as: basta estender a mão.

Ah! fosse tudo assim na vida!
Sus, não cedas à vã fraqueza.
Que adianta a queixa repetida?
Goza o painel da natureza.

Cria, e terás com que exaltar-te
No mais nobre e maior prazer.
A afeiçoar teu sonho de arte.
Sentir-te-ás convalescer.

A arte é uma fada que transmuta
E transfigura o mau destino.
Prova. Olha. Toca. Cheira. Escuta.
Cada sentido é um dom divino.

Manuel Bandeira, do livro “A cinza das horas”, 1917.






















cheguei no arraial com uma bota tão avançada
que mal o descasquei do papel
e já estava nas VII léguas, caçando fernão,
chorando por nego - que ficou para trás -
e por menino do seu nego – foge, menino!
vendo cocares dançando na mata,
querendo que o conde morra cedo.


(eita, que eu devorei, ligeira, ligeiro,
umas tantas, com os olhos)

tanta palavra bonita, essa menina
que não sei armar direito o elogio:
pra mim, até onde miro as letras
você é a melhor desses tempos
magros, medrosos, melancólicos,
cheios ainda do sumo das canas
que esse povo sujo e feio, a nobreza,
os cheios de si senhores, faziam moer,
da terra que mandavam cavoucar até doer:
feridas, samboques, minas.

e nunca nada dessa miséria
parece desaparecer – tenebrosa herança
de sangue – que el rei mandou dizer.

eu digo só: muito obrigada, poeta.
(e historiadora).


Adriane Garcia

Dorme sobre o meu seio...

Tela de Edvard Munch

















Dorme sobre o meu seio.
Sonhando de sonhar…
No teu olhar eu leio
Um lúbrico vagar.
Dorme no sonho de existir
E na ilusão de amar.

Tudo é nada, e tudo
Um sonho finge ser
O espaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer.
Dorme sobre o meu seio,
Sem mágoa nem amor…

No teu olhar eu leio
O íntimo torpor
De quem conhece o nada-ser
De vida e gozo e dor.
.

s. d.

Fernando Pessoa. 
(Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). – 103.

1ª publ. in Athena, nº 3. Lisboa: Dez. 1924.

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