Fevereiro













“Escute só, isto é muito sério.

Anda, escuta que isto é sério.

O mundo está tremendamente esquisito.

Há dez anos atrás o Leo me disse que existe uma rachadura em tudo,

e que é assim que a luz entra.

Não sei se entendi.

Você percebe alguma coisa da mistura entre falhas e iluminação?

Aliás, me diga, você percebe alguma coisa de carpintaria?

Você sabe porque foi que meteram um boi naquele estábulo

em vez de um pequeno rinoceronte?

Deve ter tido alguma coisa a ver com geografia

ou com os infelizmente insolucionáveis mistérios

que só podem vir no misticismo asiático.

Um boi é um bicho tão

inexplicável.

Ainda bem.

O amor é um animal tão mutante,

com tantas divisões possíveis.

Lembra daqueles instrumentos que usávamos na boca

quando éramos pequenininhos?

Lembra da queda deles no chão?

Então, acho que o amor quando aparece é em tudo semelhante

a forma física do mercúrio no mundo.

Quando o vidro do termômetro se quebra

o movimento químico se espalha

e então ele fica se dividindo pelos salões de todas as festas.

O mercúrio se multiplicando…

Acho que deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis

para o amor.

Ah é, eu gosto de você.

A luz entrou torta por nós adentro,

mas olha, eu gosto de você.

A luz do verão passado quebrou o vidro da melancolia

e agora ela fica se expandindo pelas ruas todas.

Desde aquilo o outro lado do sol,

a testa tremendo agora.

Hoje ainda faz bastante frio.

As cinzas ainda não aterraram sobre as cabeças disfarçadas.

Tem gente batucando suor e cerveja pelas ruas da nossa cidade sul.

Na cidade norte, há ondas de sete metros tentando acertar

no terceiro olho dos rapazinhos disfarçados de caubóis.

O mestre ainda não veio decretar o começo da abstenção e,

olha, a luz ainda está conosco.

Sim, o mundo está absurdamente esquisito.

Já ninguém confia nas imposições dos perfeitos.

A esta hora na Terra é metade carnaval, metade conspiração,

metade medo, metade fé,

metade folia, metade desespero.

E provavelmente a esta hora

uma metade do mundo está dançando

e outra metade dormindo.

Há ainda outra metade limpando as armas,

outra limpando o pó das flores.

Mas por causa do que me ensinou o místico,

eu acredito que agora exista alguém profundamente acordado.

Alguém que esteja vivendo no intervalo tênue entre o sono e a agilidade.

Supondo que ele saiba perfeitamente que este começo do século

será nosso batismo de voo para a persistência no amor.

João molhou a testa de Manoel,

os gritos das ruas molham as testas de nossos corações.

De que lado você está eu não me importo.

De que garfo você come,

de que copo você bebe,

que posto 7 você escolhe,

qual é seu orixá, seu partido, sua altura,

de qual das suas cicatrizes você cuida,

que pássaro você prefere,

quem é seu pai, qual é seu samba,

pinot noir ou chardonnay,

que protetor você usa,

qual é sua pele, seu perfume,

qual político.

Quantos amores você sonha

em que Fernando, que Ofélia,

que cinema, que bandeira,

em que cabelo você mora.

Qual dos túneis de Copacabana?

Reze para seus santos quando atravessar.

É, é impossível viver no país de Deus e seu tesouro barato.

Mas atravessar o gramado de Deus em bicicleta,

isso não é impossível não.

Escuta, isto é sério.

Andamos crescendo juntos, distraidamente.

As árvores crescem conosco,

nossa pele se estende, nosso entendimento teso, também.

O século cresce conosco.

O amor pelas ventas da cara do mundo, também.

Quanto ao um pra um entre nós dois, isso logo se vê.

Não sei nada sobre a paixão, suspeito que você também não.

Mas começo a entender que o compasso da festa

vai mudando a passos largos, dois pra lá e dois pra cá.

Portanto, escuta, isto é muito sério.

Isto é uma proposta aos trinta anos.

Agora que o mercúrio assumiu sua posição certa,

vem comigo achar o meu trono mágico entre a folhagem

e no caminho até lá,

vem dançar comigo,

vem.”


Matilde Campilho

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