A espera
Vem... Não vem... - Olho a rua: é outono. E o outono
tem um grande prestígio emocional:
vem todo cheio de alma e de abandono
e entra em meus nervos lânguidos de sono,
como a ponta excitante de um punhal!
Vem... Não vem... - Na paisagem amarela
da rua doente há um contagioso spleen.
Fica auscultando o vidro da janela:
passa um vento nervoso - e eu penso nela;
voa uma folha morta - e eu penso em mim.
Vem... Não vem... - Cada voz perdida, ou cada
figurinha ligeira de estação
toda afogada em peles, na calçada,
ou cada passo nos degraus da escada
marca o compasso do meu coração.
Vem...não vem... - E esta frase ingênua esvoaça
no ar, desfolhada como um malmequer.
Tamborilando os dedos na vidraça,
eu conto um verso - e no meu verso passa
timidamente um nome de mulher.
Vem... Não vem... Vem... Não vem... - A tarde desce
a mão cansada de dizer adeus...
E eu continuo a minha pobre prece:
- Que seria de mim, se ela não viesse?
E que será quando ela vier, meu Deus?
Guilherme de Almeida
Morte silenciosa
A noite cedeu-nos o instinto
para o fundo de nós
imigrou a ave a inquietação
Serve-nos a vida
mas não nos chega:
somos resina
de um tronco golpeado
para a luz nos abrimos
nos lábios
dessa incurável ferida
Na suprema felicidade
existe uma morte silenciada
Mia Couto
Deus
Eu me lembro! Eu me lembro! - Era pequeno
E brincava na praia; o mar bramia,
E, erguendo o dorso altivo, sacudia,
A branca espuma para o céu sereno.
E eu disse a minha mãe nesse momento:
"Que dura orquestra! Que furor insano!
Que pode haver de maior do que o oceano
Ou que seja mais forte do que o vento?"
Minha mãe a sorrir, olhou pros céus
E respondeu: - Um ser que nós não vemos,
É maior do que o mar que nós tememos,
Mais forte que o tufão, meu filho, é Deus.
Casimiro de Abreu
As coisas simples…
As coisas simples dizem-se depressa ; tão depressa
que nem conseguimos que as ouçam. As coisas
simples murmuram-se; um murmúrio
tão baixo que não chega aos ouvidos de ninguém.
As coisas simples escorrem pela prateleira
da loja; tão ao de leve que ninguém
as compra. As coisas simples flutuam com
o vento; tão alto, que não se vêm.
São assim as coisas simples: tão simples
como o sol que bate nos teus olhos, para
que os feches, e as coisas simples passem
como sombra sobre as tuas pálpebras.
Nuno Júdice
A dança da psiquê
A dança dos encéfalos acesos
Começa. A carne é fogo. A alma arde. A espaços
As cabeças, as mãos, os pés e os braços
Tombara, cedendo à ação de ignotos pesos!
É então que a vaga dos instintos presos
— Mãe de esterilidades e cansaços —
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.
Subitamente a cerebral coréa
Pára. O cosmos sintético da Idéa
Surge. Emoções extraordinárias sinto...
Arranco do meu crânio as nebulosas.
E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!
Augusto dos Anjos
Chuva?
Do céu cinzento, chega a chuva fina...
Vem mansamente, quase em desalento.
E chove, chove... Nunca que termina...
É chuva d’água... Ou chove sofrimento?
A terra dorme sob a gris neblina,
o tempo para, já não canta o vento...
Nem leve sol, a vida descortina...
É chuva d’água, ou chuva de lamento?
E vão-se o dia, noite, madrugada...
E sempre a chuva, tão desalentada...
Minh’alma indaga às nuvens: até quando?
Até que exista paz, amor, verdade,
e todo humano viva a boa-vontade...
Não vês? Não chove... Deus está chorando!
Patrícia Neme
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