Verbal e Casual


















Como queria o teu colo
Como o hoje de antigamente
Como queria teu carinho
Suave de cabelos e dedos constantemente


Desejos foram calados
Vontades e sonhos guardados
Para nenhuma ocasião
Me sirva o teu amor
Com café e bolo pela tarde
Com cheiro casual e antigo
Como gosto na boca que arde
Como achando o que fora perdido


Mordi-me internamente
A saudade de mim tem me desgastado
Os verbos que precocemente
Não encontram mais seus predicados
Me sirva em goles o teu corpo
Como esperança que abriga em um porto
A sua segurança e seus significados.




Henrique Rodrigues Soares – Canibais Urbanos

Adminimistério



























Quando o mistério chegar,
já vai me encontrar dormindo,
metade dando pro sábado,
outra metade, domingo.
Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.
Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.
Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.

Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.
Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?
Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?
Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do alfabeto?



Paulo Leminski

Poema sem palavras























Ofereço-te
Um Poema
Sem Palavras
Lavradas

Ofereço-te
Um Poema Semente
Versos
Arados
Rimas brancas
Rubras
Ritmo de sístoles
E diástoles
Pulsos líricos
Cifrados em minhas veias

Ofereço-te
Um Poema Silêncio
Verbos
Silenciosos
Que respiram
Que Transpiram
Sentidos
Todos

Ofereço-Me


Wanda Monteiro

O Monstrengo















O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
A roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»

Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»


Fernando Pessoa, Mensagem, 1934

Minha Alma (A Paz Que Eu Não Quero)






















A minha alma tá armada e apontada
Para cara do sossego!
(Sêgo! Sêgo! Sêgo! Sêgo!)
Pois paz sem voz, paz sem voz
Não é paz, é medo!
(Medo! Medo! Medo! Medo!)

Às vezes eu falo com a vida
Às vezes é ela quem diz
"Qual a paz que eu não quero conservar
Pra tentar ser feliz?"

Às vezes eu falo com a vida
Às vezes é ela quem diz
"Qual a paz que eu não quero conservar
Pra tentar ser feliz?"

As grades do condomínio
São pra trazer proteção
Mas também trazem a dúvida
Se é você que tá nessa prisão

Me abrace e me dê um beijo
Faça um filho comigo
Mas não me deixe sentar na poltrona
No dia de domingo (domingo!)

Procurando novas drogas de aluguel
Neste vídeo coagido
É pela paz que eu não quero seguir admitindo

É pela paz que eu não quero seguir
É pela paz que eu não quero seguir
É pela paz que eu não quero seguir admitido


Falcão / Lauro Farias / Marcelo Lobato / Marcelo Yuka / Xandão

Meus Cantos




















Aos pés de Deus, humilde, por momentos
Fiz um canto de mística oração.
Juntando a voz das águas e dos ventos
Fiz desse coro um hino, uma canção.

Divulgando com ardor meus pensamentos
Cantei das aves doce entonação;
Do mar ouvindo lúgubres lamentos
Cantei das ondas a acre solidão.

E cantei mais: o hálito das flores...
Da noite escura tétricos negrores
E a transparente alvura do luar.

Mas quando quis cantar meus desencantos
Ao em vez de cantar eu chorei tanto
Que mais nada jamais pude cantar.

Bernadina Vilar
De "Meus Versos" 1986

Estrada Nova





















Eu conheço o medo de ir embora
Não saber o que fazer com a mão
Gritar pro mundo e saber
Que o mundo não presta atenção
Eu conheço o medo de ir embora
Embora não pareça, a dor vai passar
Lembra se puder
Se não der, esqueça
De algum jeito vai passar
O sol já nasceu na estrada nova
E mesmo que eu impeça, ele vai brilhar
Lembra se puder
Se não der esqueça
De algum jeito vai passar
Eu conheço o medo de ir embora
O futuro agarra a sua mão
Será que é o trem que passou
Ou passou quem fica na estação?
Eu conheço o medo de ir embora
E nada que interessa se pode guardar
Lembra se puder
Se não der esqueça
De algum jeito vai passar


Oswaldo Montenegro

Mar Morto














Quando tudo era simples
Nasci um veio d’água
Aprendi, cresci com limites
Mas na busca de espaços
Tornei-me pequeno riacho

As manhãs chegaram simples
Com o cheiro do algo novo
Que procura até encontrar
Rompendo pelas terras e florestas
Carregando até que não queria ir
Para ver o mar, para ser o mar

Perdido fiquei na metrópole mar
Já não havia terra e nada para buscar
Afoguei-me, sendo mar
Liberei o meu mal sujando o mar

Perdi o doce no oceano
Mar salgado levou minhas águas
Doces, e sujo fiquei salgado
Um mar morto na noite suja

Antes fosse ainda um rio
Um pequeno riacho
Com o doce da vida que pensei encontrar
Quando chegasse ao mar

Acordei no meio da noite
E me entreguei ao mar
Minhas mãos suavam
Achei que estava morto

Lágrimas brotaram nos meus olhos
Salgados e muito salgados
E pelo caminho do sal
Conservei minhas dores.


Henrique Rodrigues Soares – Canibais Urbanos

Sintonia para pressa e presságio



















Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.


Paulo Leminski

Lisbon Revisited (1923)



















NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!


Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

A Longa Marcha























Há um desprezo pelo velho instituído
Certo abandono do que foi constituído
Um ressuscitar nas sombras do destituído
Luta corporal, revigorante, do que deve ser restituído


O que somar? Se só tem subtraído
Como confiar? Em quem tem nos traído
Nossos infantes com caminhos obstruídos
Nossa mocidade de sonhos prostituídos.


Nos escombros natimortos da memória
Nasceu um fluido de esperança
Nos assombros perturbadores da história
Com seus mitos, lendas e perseveranças


Somos fantasmas vivos das escórias
Marchando firme por longas andanças
Kamikazes sem rumo e sem glorias
Um povo sem festas e sem crianças


Marcharemos sim, com nossos pés descalços
Sobrepondo os fins e seus percalços
Secaremos lágrimas ao receber o hálito do vento
Escreveremos páginas com as tintas do tempo


Surraremos o brim sem embaraços
Uma só batida de pernas e braços
Sem palavras num só movimento
Envolvidos pelo mesmo sofrimento.



Henrique Rodrigues Soares – Canibais Urbanos

Intuição

















Canta uma canção bonita
Falando da vida, em 'Ré maior'
Canta uma canção daquela
De filosofia
Do mundo bem melhor

Canta uma canção que aguente
Essa paulada, e a gente
Bate o pé no chão
Canta uma canção daquela
Pula da janela, bate o pé no chão

Sem o compromisso estreito
De falar perfeito
Coerente ou não
Sem o verso estilizado
O verso emocionado
Bate o pé no chão

Canto uma canção bonita
Falando da vida, em 'Ré maior'.
Canto uma canção daquelas
De filosofia
E mundo bem melhor

Canta uma canção que aguente
Essa paulada, e a gente
Bate o pé no chão
Canto uma canção daquela
Pula da janela, bate o pé no chão

Sem o compromisso estreito
De falar perfeito
Coerente ou não
Sem o verso estilizado
O verso emocionado
Bate o pé no chão

Canta o que não silencia
É onde principia a intuição
E nasce uma canção rimada
Da voz arrancada
Ao nosso coração

Como, sem licença, o sol
Rompe a barra da noite
Sem pedir perdão!
Hoje quem não cantaria
Grita a poesia
E bate o pé no chão!

E hoje quem não cantaria
Grita a poesia
E bate o pé no chão!

Sem o compromisso estreito
De falar perfeito
Bate o pé no chão
Sem o verso estilizado
O verso emocionado
Bate o pé no chão

Canto uma canção bonita
Falando da vida, em 'Ré maior'
Canto uma canção daquela
De filosofia
Do mundo bem melhor

Canta uma canção que aguente
Essa paulada, e a gente
Bate o pé no chão
E hoje quem não cantaria
Grita a poesia
Bate o pé no chão



Oswaldo Montenegro

Pastor



















Todo o rebanho espalhado
pela paisagem cinzenta
de inverno fresco e calado,
não sei de que se apascenta
neste chão frio e surrado;
apenas o meu cuidado
de bom pastor o sustenta.


Meu gado de criação
vou-o descendo às canadas
onde o frio das geadas
não despiu de todo o chão;
— minhas ovelhas pejadas
precisam de ser tratadas
pela sua condição...


Que o céu tão baixo e cerrado
carrega de nuvens escuras
a serra e o meu cuidado
pelas ovelhas e as puras
crias de olhar resignado.
Eu sofro pelo meu gado,
pelas suas amarguras.


E quando à tarde voltamos
para o redil que nos espera
no meio do campo absorto,
ao frio que dilacera,
resta-me só um conforto:


pensar que este mundo morto
terá uma primavera.



Cristovam Pavia

Amar você é coisa de minutos...



























Amar você é coisa de minutos
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou
Eu a teus pés derramado
Pouco resta do que fui
De ti depende ser bom ou ruim
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um deus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui


Paulo Leminski

Eros e Psique


















Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
Do além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino -
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão , e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia -


Fernando Pessoa

Aviso aos náufragos




















Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta pagina, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não e assim que é a vida?


Paulo Leminski

As Pombas
















Vai-se a primeira pomba despertada…
Vai-se outra mais… mais outra… enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada.

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada.

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem… Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.


Raimundo Correia

Eu Quero Ser Feliz Agora

















Se alguém disser pra você não cantar
Deixar teu sonho ali pr'uma outra hora
Que a segurança exige medo
Que quem tem medo Deus adora

Se alguém disser pra você não dançar
Que nessa festa você tá de fora
Que você volte pro rebanho.
Não acredite, grite, sem demora...

Eu quero ser feliz Agora

Se alguém vier com papo perigoso de dizer que é preciso paciência pra viver.
Que andando ali quieto
Comportado, limitado
Só coitado, você não vai se perder
Que manso imitando uma boiada, você vai boca fechada pro curral sem merecer
Que Deus só manda ajuda a quem se ferra, e quando o guarda-chuva emperra certamente vai chover.
Se joga na primeira ousadia, que tá pra nascer o dia do futuro que te adora.
E bota o microfone na lapela, olha pra vida e diz pra ela...

Eu quero ser feliz agora

Se alguém disser pra você não cantar
Deixar teu sonho ali pr'uma outra hora
Que a segurança exige medo
E que quem tem medo deus adora

Se alguém disser pra você não dançar
E que nessa festa você tá de fora
Que volte pro rebanho.

Não acredite, grite, sem demora...

Eu quero ser feliz Agora


Oswaldo Montenegro

extrema-unção


Que fosse limpo e não foi
Que fosse justo e jamais
Que fosse certo e nem me ouviu
Que fosse belo e tudo matou

Que fosse plano e se apresentasse
Pacífico por vidraças em gotas
A chuva leve e oceânica
Com o cheiro do sal do mar

Que fosse morte calma e velha
Mas não
Foi confusão
E guerra.


Adriane Garcia

Lanterna dos Afogados

















Quando tá escuro
E ninguém te ouve
Quando chega a noite
E você pode chorar

Há uma luz no túnel
Dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar

Eu tô na lanterna dos afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar

Uma noite longa
Pra uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar

E são tantas marcas
Que já fazem parte
Do que eu sou agora
Mas ainda sei me virar

Eu tô na lanterna dos afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar

Uma noite longa
Pra uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar

Eu tô na lanterna dos afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar


Herbert Vianna - Paralamas do Sucesso

Primeiro Fausto - Primeiro Tema - MISTÉRIO DO MUNDO






















I
Quero fugir ao mistério
Para onde fugirei?
Ele é a vida e a morte
Ó Dor, aonde me irei?


II
O mistério de tudo
Aproxima-se tanto do meu ser,
Chega aos olhos meus d'alma tão [de] perto,
Que me dissolvo em trevas e universo...
Em trevas me apavoro escuramente.

III
O perene mistério, que atravessa
Como um suspiro céus e corações...

IV
O mistério ruiu sobre a minha alma
E soterrou-a... Morro consciente!

V
Acorda, eis o mistério ao pé de ti!
E assim pensando riu amargamente,
Dentro em mim riu como se chorasse!

VI
Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que esfria,
São outra coisa que a noite e o vento —
Sombras de vida e de pensamento.

Tudo o que vemos é outra coisa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.

Tudo o que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento,
São sombras de mãos, cujos gestos são
A ilusão madre desta ilusão.

VII
Mundo, confranges-me por existir.
Tenho-te horror porque te sinto ser
E compreendo que te sinto ser
Até às fezes da compreensão.
Bebi a taça [...] do pensamento
Até ao fim; reconhecia pois
Vazia, e achei horror. Mas eu bebi-a.
Raciocinei até achar verdade,
Achei-a e não a entendo. Já se esvai
Neste desejo de compreensão,
Inalteravelmente,
Neste lidar com seres e absolutos,
O que em mim, por sentir, me liga à vida
E pelo pensamento me faz homem.
............................................................................
............................................................................
..........................................E neste orgulho certo
Fechado mais ainda e alheado
Me vou, do limitado e relativo
Mundo em que arrasto a cruz do meu pensar.

VIII
Cidades, com seus comércios...

Tudo é permanentemente estranho, mesmamente
Descomunal, no pensamento fundo;
Tudo é mistério, tudo é transcendente
Na sua complexidade enorme:
Um raciocínio visionado e exterior,
Uma ordeira misteriosidade —
Silêncio interior cheio de som.

IX
Já estão em mim exaustas,
Deixando-me transido de terror,
Todas as formas de pensar [...]
O enigma do universo. Já cheguei
A conceber, como requinte extremo
Da exausta inteligência, que era Deus...
........................................................................
Já cheguei a aceitar como verdade
O que nos dão por ela, e a admitir
Uma realidade não real
Mas não sonhada, [como o] Deus Cristão.
........................................................................
...Falhados pensamentos e sistemas
Que, por falharem, só mais negro fazem
O poder horroroso que os transcende
A todos, [sim,] a todos.
Oh horror! Oh mistério! Oh existência!
........................................................................

X
O segredo da Busca é que não se acha.
Eternos mundos infinitamente,
Uns dentro de outros, sem cessar decorrem
Inúteis; Sóis, Deuses, Deus dos Deuses
Neles intercalados e perdidos
Nem a nós encontramos no infinito.
Tudo é sempre diverso, e sempre adiante
De [Deus] e Deuses: essa, a luz incerta
Da suprema verdade.

XI
Nos vastos céus estrelados
Que estão além da razão,
Sob a regência de fados
Que ninguém sabe o que são,
Ha sistemas infinitos,
Sóis centros de mundos seus,

E cada sol é um Deus.

Eternamente excluídos
Uns dos outros, cada um
É universo.

XII
Num atordoamento e confusão
Arde-me a alma, sinto nos meus olhos
Um fogo estranho, de compreensão
E incompreensão urdido, enorme
Agonia e anseio de existência,
Horror e dor, [agonia] sem fim!

XIII
Fantasmas sem lugar, que a minha mente
Figura no visível, sombras minhas
Do diálogo comigo.

XIV
Não, não vos disse ... A essência inatingível
Da profusão das coisas, a substância,
Furta-se até a si mesma. Se entendesses
Neste ou naquele modo o que vos disse,
Não o entendesses, que lhe falta o modo
Por que se entenda.

XV
Do eterno erro na eterna viagem,
O mais que [exprime] na alma que ousa,
É sempre nome, sempre linguagem,
O véu e capa de uma outra cousa.

Nem que conheças de frente o Deus,
Nem que o Eterno te dê a mão,
Vês a verdade, rompes os véus,
Tens mais caminho que a solidão.

Todos os astros, inda os que brilham
No céu sem fundo do mundo interno,
São só caminhos que falsos trilham
Eternos passos do erro eterno.

Volta a meu seio, que não conhece
os deuses, porque os não vê,
Volta a meus braços, melhor esquece
que tudo só fingir que é.

XVI
Ondas de aspiração [...]
Sem mesmo o coração e alma atingir
Do vosso sentimento; ondas de pranto,
Não vos posso chorar, e em mim subis,
Maré imensa, numerosa e surda,
Para morrer da praia no limite
Que a vida impõe ao Ser; ondas saudosas
De algum mar alto aonde a praia seja
Um sonho inútil, ou de alguma terra
Desconhecida mais que o eterno [amor]
De eterno sofrimento, e aonde formas
Dos olhos de alma não imaginadas
Vogam essências [...]
Esquecidas daquilo que chamamos
Suspiros, lágrimas, desolação;
[Ondas] nas quais não posso visionar
Nem dentro em mim, em sonho, [barco] ou ilha,
Nem esperança transitória, nem
Ilusão nada da desilusão;

Oh, ondas sem brancuras nem asperezas,
Mas redondas, como óleos, e silentes
No vosso intérmino e total rumor —
Oh, ondas das almas, decaí em lago
Ou levantai-vos ásperas e brancas
Com o sussurro ácido da esperança ...
Erguei em tempestades a minha alma!
......................................................................
.................................................. Não haverá,

Além da morte e da imortalidade,
Qualquer coisa maior? Ah, deve haver
Além da vida e morte, ser, não ser,
Um inominável supertranscendente,
Eterno incógnito e incognoscível!

Deus? Nojo. Céu, inferno? Nojo, nojo.
Pr'a que pensar, se há de parar aqui
O curto vôo do entendimento?
Mais além! Pensamento, mais além!

XVII
Paro à beira de mim e me debruço...
Abismo... E nesse abismo o Universo.
Com seu tempo e seu 'spaço, é um astro, e nesse
Alguns há, outros universos, outras
Formas do Ser com outros tempos, 'spaços
E outras vidas diversas desta vida...

O espírito é outra estrela. . . O Deus pensável
É um sol... E há mais Deuses, mais espíritos
De outras essências de Realidade ...

E eu precipito-me no abismo, e fico
Em mim... E nunca desço ... E fecho os olhos
E sonho — e acordo para a Natureza
Assim eu volto a mim e à Vida
..........................................................................
Deus a si próprio não se compreende.
Sua origem é mais divina que ele,
E ele não tem a origem que as palavras
Pensam fazer pensar...
.........................................................................
O absatrato Ser [em sua] abstrata idéia
Apagou-se, e eu fiquei na noite eterna.
Eu e o Mistério — face a face...

XVIII
No meu abismo medonho
Se despenha mudamente
A catarata de sonho
Do mundo eterno e presente.
Formas e idéias eu bebo,
E o mistério e horror do mundo
Silentemente recebo
No meu abismo profundo.

O Ser em si nem é o nome
Do meu ser inenarrável;
No meu mudo Maëlstrom
O grande mundo inestável
Como um suspiro se apaga
E um silêncio mais que infindo
Acolhe o acorrer do vago
Que em mim se vai esvaindo.

Por mais que o Ser, que transcende
Criatura e Criador,
Se esse Ser ninguém entende
Ele, a mim e ao meu horror,
Menos. Vida, pensamento,
Tudo o que nem se adivinha,
É tudo como um momento
Numa eternidade minha.
.................................................................

XIX
................................................. Abre-me o sonho
Para a loucura a tenebrosa porta,
Que a treva é menos negra que esta luz.

O terror desvaria-me, o terror
De me sentir viver e ter o mundo
Sonhado a laços de compreensão
Na minha alma gelada.

XX
A qualquer modo todo escuridão
Eu sou supremo. Sou o Cristo negro.
O que não crê, nem ama — o que só sabe
O mistério tornado carne.

Há um orgulho atro que me diz
Que Sou Deus inconscienciando-me
Para humano; sou mais real que o mundo,
Por isso odeio-lhe a existência enorme,
O seu amontoar de coisas vistas.
Como um santo devoto
Odeio o mundo, porque o que eu sou
E que não sei sentir que sou, conhece-o
Por não real e não ali.
Por isso odeio-o —
Seja eu o destruidor! Seja eu Deus ira!

XXI
Sou a Consciência em ódio ao inconsciente,
Sou um símbolo incarnado em dor e ódio,
Pedaço de alma de possível Deus
Arremessado para o mundo
Com a saudade pávida da pátria...
.....................................................................

Ó sistema mentido do universo,
Estrelas nadas, sóis irreais,
Oh, com que ódio carnal e estonteante
Meu ser de desterrado vos odeia!
Eu sou o inferno. Sou o Cristo negro,
Pregado na cruz ígnea de mim mesmo.
Sou o saber que ignora,
Sou a insônia da dor e do pensar
...................................................................

XXII
Ah, não poder tirar de mim os olhos,
Os olhos da minha alma [...]
(Disso a que alma eu chamo)
Só sei de duas coisas, nelas absorto
Profundamente: eu e o universo,
O universo e o mistério e eu sentindo
O universo e o mistério, apagados
Humanidade, vida, amor, riqueza.

Oh vulgar, oh feliz! Quem sonha mais,
Eu ou tu? Tu que vives inconsciente,
Ignorando este horror que é existir,
Ser, perante o [profundo] pensamento
Que o não resolve em compreensão, tu
Ou eu, que analisando e discorrendo
E penetrando [...] nas essências,
Cada vez sinto mais desordenado
Meu pensamento louco e sucumbido.
Cada vez sinto mais como se eu,
Sonhando menos, consciência alerta
Fosse apenas sonhando mais profundo
.......................................................................

XXIII
.................................................. Ah, que diversidade,
E tudo sendo. O mistério do mundo,
O íntimo, horroroso, desolado,
Verdadeiro mistério da existência,
Consiste em haver esse mistério.
.......................................................................

XXIV
Essa simplicidade d'alma
Possuída não só dos inocentes
Mas até dos viciosos, criminosos...
.......................................................................
.......................................... essa simplicidade
Perdi-a, e só me resta um vácuo imenso
Que o pensamento friamente ocupa.

XXV
Tremo de medo:
Eis o segredo aberto.
Além de ti
Nada há, decerto,
Nem pode haver
Além de ti,
Que [só] tens essência
Nem tens existência
E te chamas [...] Ser.

XXVI
Mais que a existência
É um mistério o existir, o ser, o haver
Um ser, uma existência, um existir —
Um qualquer, que não este, por ser este —
Este é o problema que perturba mais.
O que é existir — não nós ou o mundo
Mas existir em si?

XXVII
Não é a dor de já não poder crer
Que m'oprime, nem a de não saber,
Mas apenas [e mais] completamente o horror
De ter visto o mistério frente a frente,
De tê-lo visto e compreendido em toda
A sua infinidade de mistério.
É isto que me alheia, que me [traz]
Sempre mostrado em mim como um terror
E maior terror há-o?

XXVIII
Para mim ser é admirar-me
de estar sendo.

XXIX
Há entre mim e o real um véu
A própria concepção impenetrável.
Não me concebo amando, combatendo,
Vivendo com os outros. Há, em mim,
Uma impossibilidade de existir
De que [abdiquei], vivendo.

XXX
Tornei minha alma exterior a mim.

XXXI
Tarde! Não poder
Adivinhar o teu segredo
E o teu mistério ilúcido. Ignorar
Esta emoção,
Vaga desesperança quase amarga,
Da sensação que dás.
.....................................................................

XXXII
.....................................................................
Qu'importa? Tudo é o mesmo. A mim quer seja
Manhã inda d'orvalho arrepiada,
Dia, ligeiro ao sol, pesado em nuvens,
A tarde,
A noite misteriosa,
Tudo, se nele penso, só me amarga
E me angustia.
.....................................................................

XXXIII
Acordado, abro os olhos. 
Vivo! Sou vivo ainda! Torno a ver-te,
Pálida luz, silente luz da tarde,
Que ora me [enches] de um cálido horror!
Onde estou? Onde estive? Ferve em mim,
Numa quietação indefinida,
Um eco de tumultos e de sombras
E uma coorte como de fantasmas
[Gritantes]. E luzes, cantos, gritos,
Desejos, lágrimas, chamas e corpos,
Num referver [tumultuoso] e misturado,
Numa esvaída confusão noturna —
Como tendo piedade de deixar-me —
Sinto passar em mim, como visões.
Nem com esforço recordar-me posso
Se são fantasmas ou vagas lembranças;
Não me lembro de vida alguma minha
E o necessário esforço, desejado
P'ra recordar-me, não o posso ter.
.....................................................................
Acabar. Nem desejo nem espero
Nem temo, n'apatia do meu ser.
Para que pois viver? Quero a morte,
E ao sentir os seus passos
Alegremente e apagadamente
Me voltarei lento para o seu lado,
Deixando enfim cair sobre o meu braço
Minha cabeça, olhos cerrados, quentes
Do choro vago já meio esquecido.
Mas onde estou? Que casa é esta? Quarto
Rude, simples — não sei, não tenho força
Para observar — quarto cheio da luz
Escura e demorada, que na tarde
Outrora eu... Mas que importa? A luz é tudo.
Eu conheço-a.

XXXIV
Basta ser breve e transitória a vida
Para ser sonho. A mim, como a quem sonha,
E escuramente pesa a certa mágoa
De ter que despertar — a mim, a morte,
Mais como o horror de me tirar o sonho
E dar-me a realidade, me apavora,
Que como morte. Quantas vezes [quantas],
Em sonhos vazios conscientemente
Imerso, me não pesa o ter que ver
A realidade e o dia!
Sim, este mundo com seu céu e terra,
Com seus mares e rios e montanhas,
Com suas árvores, aves, bichos, homens,
Com o que o homem, com translata arte,
De qualquer construção divina, fez
— Casas, cidades, coisas, modas [...] —,
Este mundo, que [nunca] reconheço,
Por sonho amo, e por ser sonho o [quero]
Ou [tenho] que deixá-lo e ver verdade,
— Me toma a gorja, com horror de negro,
O pensamento da hora inevitável,
E a verdade da morte me confrange.
Pudesse eu, sim, pudesse, eternamente
Alheio ao verdadeiro ser do mundo,
Viver sempre este sonho que é a vida!
Expulso embora da divina essência,
Ficção fingindo, vã mentira eterna,
Alma-sonho, que eu nunca despertasse!
Suave me é o sonho, e a vida [...] é sonho.
Temo a verdade e a verdadeira vida.
Quantas vezes, pesada a vida, busco
No seio maternal da noite e do erro,
O alívio de sonhar, dormindo; e o sonho
Uma perfeita vida me parece
[...] ..., e porventura
Porque depressa passa. E assim é a vida.

XXXV
E o sentimento de que a vida passa
E o senti-la passar
Toma em mim tal intensidade,
De desolado e confrangido horror,
Que a esse próprio horror, horror eu tenho
Por ele e por senti-lo,
E por senti-lo como tal.

XXXVI
Aborreço-me da possibilidade
De vida eterna; o tédio
De viver sempre deve ser imenso.
Talvez o infinito seja isso...
Já o tédio de o pensar é horroroso.


Fernando Pessoa

A lua no cinema



























A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!


Paulo Leminski

Pessach















Com o que encheste teus celeiros?
Acrisolaste o perfume em teu canteiro?
A fuligem do tempo em cinzas no braseiro
Não te custa o que é doce embusteiro
Não se acredita em profeta costumeiro
Nas trevas tudo fica nítido com um simples candeeiro


Como viveu e perdeu-se o seu dinheiro?
Um dia pronto que seja por inteiro
Precisa-se apenas duas moedas para o barqueiro
Ou responder as indagações do santo porteiro
A simplicidade de um hobbit dos Bolseiros
O sangue quente de holocaustos de cordeiros.


Que me importa este vespeiro
As respostas duvidosas de terceiros
Purgatórios, hades, infernos ou cartel
Campos elísios, seio de Abraão ou céu
O que foi escrito no papel
Pode ter custado lágrimas e orações.



Henrique Rodrigues Soares – Canibais Urbanos

Ode Marítima





















Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui…

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.


Fernando Pessoa

Cais

















Turva água a tua
Que de teus olhos
Escorre nua


Molha o muro da face tua


Abre-lhe fenda
Funda
Escura


Fina janela para teu subterrâneo Cais


Abismo de teus Ais.


Wanda Monteiro

Sem título



















Eu tão isósceles
Você ângulo
Hipóteses
Sobre o meu tesão

Teses sínteses
Antíteses
Vê bem onde pises
Pode ser meu coração


Paulo Leminski

a incomensurável montanha de Inês, que é morta



Eis assomada no cume do que acumulei
A nuvem causando-me a grande sombra
É de sol a sol que subo carregando o peso
Dos meus erros de bicho tão ignorante

E não creias fosse possível descer
E não creias fosse plausível chorar
Nuvem infinita, montanha rumo ao nada
Nem do cilício te lembres, as costas de sal e lanho

Plantei, plantaste, ninguém sabe que deserto
Mas é sempre tarde para não lhe dar prosseguimento
Enquanto os cabelos cozinham na brisa quente
E só algum sonho nos tira a areia dos olhos.


Adriane Garcia

O cego e a guitarra

Pablo Picasso


























O ruído vário da rua
Passa alto por mim que sigo.
Vejo: cada coisa é sua
Oiço: cada som é consigo.

Sou como a praia a que invade
Um mar que torna a descer.
Ah, nisto tudo a verdade
É só eu ter que morrer.

Depois de eu cessar, o ruído.
Não, não ajusto nada
Ao meu conceito perdido
Como uma flor na estrada.

Cheguei à janela
Porque ouvi cantar.
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.

Ambos fazem pena,
São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.

Eu também sou um cego
Cantando na estrada,
A estrada é maior
E não peço nada.



Fernando Pessoa

O Tempo seca o Amor

O tempo seca a beleza, seca o amor, seca as palavras. Deixa tudo solto, leve, desunido para sempre como as areias nas águas. O tempo seca a ...

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