Hoje
Estremeço ante ao vento sibilante do amor
Fujo de sua força, do seu poder,
O amor é entrega despercebida da alma
Passamos a viver a vida de outro ser
Hoje contenho meus sentimentos
Cansei de me ver sofrer
Abri no peito um esconderijo
Onde me escondo quando quero me perder
Hoje meu coração se contenta com o silêncio, é ausente.
Vez ou outra quer voar, não permito
Ele fica descontente...
Tudo é tão efêmero aqui dentro da minha mente
Hoje calei minha voz, ouço o vento, que nada diz
Apenas ecos de momentos vãos
Que nada importam, são lembranças do que não fiz
...Aquieto-me no consciente segredar do meu coração.
Silviah Carvalho
Publicado no Recanto das Letras em 02/09/2010
Código do texto: T2475138
Lua Adversa
Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.
Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...
Cecília Meireles
Maria
Tenho cantado esperanças...
Tenho falado d'amores...
Das saudades e dos sonhos
Com que embalo as minhas dores...
Entre os ventos suspirando
Vagas, tênues harmonias,
Tendes visto como correm
Minhas doidas fantasias.
E eu cuidei que era poesia
Todo esse louco sonhar...
Cuidei saber o que e vida
Só porque sei delirar...
Só porque a noite, dormindo
Ao seio duma visão,
Encontrava algum alivio,
Meu dorido coração,
Cuidei ser amor aquilo
E ser aquilo viver...
Oh! que sonhos que se abraçam
Quando se quer esquecer !
Eram fantasmas que a noite
Trouxe, e o dia já levou...
A luz d'estranha alvorada
Hoje minha alma acordou !
Esquecei aqueles cantos...
Só agora sei falar !
Perdoa-me esses delírios...
Só agora soube amar !
Antero de Quental
Às vezes entre a tormenta
Às vezes entre a tormenta,
quando já umedeceu,
raia uma nesga no céu,
com que a alma se alimenta.
E às vezes entre o torpor
que não é tormenta da alma,
raia uma espécie de calma
que não conhece o langor.
E, quer num quer noutro caso,
como o mal feito está feito,
restam os versos que deito,
vinho no copo do acaso.
Porque verdadeiramente
sentir é tão complicado
que só andando enganado
é que se crê que se sente.
Sofremos? Os versos pecam.
Mentimos? Os versos falham.
E tudo é chuvas que orvalham
folhas caídas que secam.
Atravessa esta paisagem o meu sonho
Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse
desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele
porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...
Fernando Pessoa
Viajam as palavras
Passageiros, formo como que um diagrama
entre o céu tremido e o jornal que a trepidação
do trem sacode
em minhas mãos.
A paisagem me vem oferecer seus buquês
roxos e cor de ouro
mas foge, arrependida.
Vistos, de longe, de passagem,
todos os rostos são amigos, são iguais.
Só que depois, em minha memória,
que estará rolando ainda esta paisagem
impressa em mim, à minha saudade
como um quadro à parede.
O possível desastre
faz cantar, como uma carretilha ao meu ouvido,
o pássaro do adeus.
O trem de ferro desloca o sentido das coisas.
Viajam as palavras.
Cassiano Ricardo
Como um Soneto
É como um soneto que não sai.
É como se não brotasse a semente.
É como se houvesse em minha mente
Um verso pendurado que não cai.
Triste, penso em tudo que me sai
Antes mesmo de me ser equivalente.
É feito uma alegria de aguardente
Que vem rápido e rápido se vai.
Tudo que busquei com tanta ansiedade
Se partiu, me abandonou sem piedade
E a vida hoje me trata com desdém.
Aprendi, contrariado, a verdade,
E hoje sei que essa tal felicidade
É com um soneto que não vem.
Danilo del Monte
Publicado no Recanto das Letras em 03/11/2010
Código do texto: T2594076
Fuga da Juventude
Fatigado o verão dobra a cabeça
e olha no lago a sua imagem descorada.
Fatigado e coberto de poeira
vou pelas alamedas sombreadas.
Entre os olmos perpassa um vento tímido.
Atrás de mim tenho o vermelho céu
e à minha frente receios da noite
e crepúsculo e morte.
Vou fatigado e coberto de pó:
atrás de mim, hesitante, de pé,
a juventude abana a linda cabeça
e prosseguir comigo não mais quer.
Hermann Hesse
Humilde Súplica
Eu pederia,Senhor, um crepúsculo tranquilo.
Que delícia não ter mais nada que arrancar
à alma perder o tato para a carícia
e na boca neutra sentir inapetência
por todos os vinhos.
Eu já disse adeus a muitas coisas
mas de outras inda custa despedir-me.
Senhor, dai-me a ventura de ver descer a noite
sem me importar com as estrelas.
O tempo me dissolveu nas horas
e a treva e o silêncio já estão cheios de mim.
Nada me falta. Tenho tudo que já tive.
Deixai-me agora quieto
ouvindo com volúpia
um murcho cair de pétalas
de uma roseira que não dará mais rosas.
Menotti Del Picchia
Poemas do Vento
Gastar-me no tempo
diluir-me no vento
evolar-se no sonho
deixando
- haverá quem o colha? -
um resíduo...
Memória.
Levarei por onde ande
uma inquietação mais nada
impulso vital que extingo
dentro de um pouco de lama.
Tal que o vento que baila
fazendo seu corpo efêmero
com a poeira das estradas...
Menotti Del Picchia
Nessun Maggior Dolore...
Tenho-te sempre a imagem na memória,
Nestes dias de dúvida em que vivo
Com a minha grande dor sem lenitivo,
Meu amor, minha vida, minha glória.
É uma visão nostálgica e ilusória,
Que me ficou, talvez, como exclusivo
E vão conforto ao curso fugitivo
Desta existência incerta e transitória.
Seja, embora, uma sombra imaginária,
A mêmore ilusão que é o meu enlevo,
Já se me vai tornando necessária,
Pois que te pondo em místico relevo,
Evoca, em minha vida solitária,
A efêmera ventura que te devo.
Da Costa e Silva
Vou Agora Sonhar...
A minha vida, sempre inquieta como o mar,
É de renúncia, sacrifício e desencanto:
Enquanto vão e vêm as ondas do meu pranto,
Estende-se o horizonte, além do meu olhar...
Na imensidade azul fico a cismar, enquanto,
A refletir o céu, vai-se acalmando o mar...
Acalma-se também minha dor, por encanto:
— Já cansei de sofrer! Vou agora sonhar...
Da Costa e Silva
Dança do ventre
Torva, febril, torcicolosamente,
numa espiral de elétricos volteios,
na cabeça, nos olhos e nos seios
fluíam-lhe os venenos da serpente.
Ah! que agonia tenebrosa e ardente!
que convulsões, que lúbricos anseios,
quanta volúpia e quantos bamboleios,
que brusco e horrível sensualismo quente.
O ventre, em pinchos, empinava todo
como réptil abjecto sobre o lodo,
espolinhando e retorcido em fúria.
Era a dança macabra e multiforme
de um verme estranho, colossal, enorme,
do demônio sangrento da luxúria!
Cruz e Souza
Braços
Braços nervosos, brancas opulências,
brumais brancuras, fúlgidas brancuras,
alvuras castas, virginais alvuras,
latescências das raras latescências.
As fascinantes, mórbidas dormências
dos teus abraços de letais flexuras,
produzem sensações de agres torturas,
dos desejos as mornas florescências.
Braços nervosos, tentadoras serpes
que prendem, tetanizam como os herpes,
dos delírios na trêmula coorte ...
Pompa de carnes tépidas e flóreas,
braços de estranhas correções marmóreas,
abertos para o Amor e para a Morte!
Cruz e Souza
Um pedido
Preciso ouvir teu silêncio
nas cores dos sonhos,
no orvalho que molha
o mistério de uma flor
Deixe teus olhos eu decifrar,
no som dos ventos
do meu poetar,
o que dizem ao contemplar
os resquícios da esperança
Quero o cheiro da tua lembrança
inerte na brisa das manhãs
que paralisa o inverno
e em mim vem descansar
Semeie a esperança
no vazio do meu ser,
na fuga dos caminhos perdidos,
no tempo que brinca comigo,
ou na luz que devora
minha suavidade matinal
Conceição Bentes
Alvorecer
Diante do céu
o cais de Deus,
a terra se espelha
na luz do alvorecer
e o vento de cristais anunciam
o desmaio de estrelas
ao nascer do dia
O infinito clama à vida
que recomeça numa haste suspensa
onde o equilíbrio das nuvens
se deita numa esteira
Conceição Bentes
O meu nirvana
No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!
Nessa manumissão schopenhauereana,
Onde a Vida do humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Idéia Soberana!
Destruída a sensação que oriunda fora
Do tacto — ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéias —
Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Idéias!
Augusto dos Anjos
O canto dos presos
Troa, a alardear bárbaros sons abstrusos,
O epitalâmio da Suprema Falta,
Entoado asperamente, em voz muito alta,
Pela promiscuidade dos reclusos!
No wagnerismo desses sons confusos,
Em que o Mal se engrandece e o ódio se exalta,
Uiva, à luz de fantástica ribalta,
A ignomínia de todos os abusos!
É a prosódia do cárcere, é a partênea
Aterradoramente heterogênea
Dos grandes transviamentos subjectivos...
È a saudade dos erros satisfeitos,
Que, não cabendo mais dentro dos peitos,
Se escapa pela boca dos cativos!
Augusto dos Anjos
O morcego
Meia noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vêde:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
"Vou mandar levantar outra parede..."
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o tecto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
Augusto dos Anjos
Mundo Interior
Ouço que a natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
De sol à infima luzerna.
Ouço que a natureza, - a natureza externa, -
Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida
Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna
Entre as flores da bela Armida.
E contudo, se fecho os olhos, e mergulho
Dentro em mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo
Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,
Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,
E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,
Um segredo que atrai, que desafia - e dorme.
Machado de Assis
Quando
Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.
O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.
Nem nunca, propriamente reparei,
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei
Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
Alberto Caeiro
Espaço lírico
Não amo o espaço que o meu corpo ocupa
Num jardim público, num estribo de bonde.
Mas o espaço que mora em mim, luz interior.
Um espaço que é meu como uma flor
Que me nasceu por dentro, entre paredes.
Nutrido à custa de secretas sedes.
Que é a forma? Não o simples adorno.
Não o corpo habitando o espaço, mas o espaço
Dentro do meu perfil, do meu contorno.
Que haja em mim um chão vivo em cada passo
(mesmo nas horas mais obscuras) para
Que eu possa amar a todas as criaturas.
Morte: retorno ao incriado. Espaço:
Virgindade do tempo em campo verde.
Cassiano Ricardo
As Valsas
Como se desfazem as valsas
por longos pianos aéreos
que a noite envolve em suas chuvas!
Que ternura nas nossas pálpebras,
pelo exílio suave dos gestos
e dos perfis de antigas músicas!
Os marfins opacos recordam,
com uma graça desiludida,
a aura da morta formosura.
Gente de sonho, sem memória,
entrelaçada, conduzida
por salões de esperança e dúvida.
E eram tão leves, nessas valsas!
E levavam lágrimas entre
seus colares e suas luvas!
E falavam de suas mágoas,
valsando, e delicadamente,
com a voz presa e as pestanas úmidas!
Ah, tão longe, tão longe, as salas...
Levados os lustres e as vidas,
o amor triste, a humilde loucura...
Ficaram apenas as valsas,
girando cegas e sozinhas,
sem os habitantes da música!
Cecília Meireles
Azul
Hoje,
quero despir-me de lembranças acres,
esvaziar minh'alma das saudades.
E embebedar-me do frescor nascente
no sopro da manhã que,
além,
me espreita;
seja passado esse cinzento encanto,
do qual não tive a bênção da colheita.
Hoje,
quero dos verdes o mais puro veio,
para tecer sonhares de porvir.
Semente em cio, no morno da terra,
em mim renasce o cantar bendito
da vida, em gestação de um infinito...
Do céu que surge azul,
dentro de mim.
Patrícia Neme
Encarnação
Carnais, sejam carnais tantos desejos,
carnais, sejam carnais tantos anseios,
palpitações e frêmitos e enleios,
das harpas da emoção tantos arpejos...
Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,
à noite, ao luar, intumescer os seios
láteos, de finos e azulados veios
de virgindade, de pudor, de pejos...
Sejam carnais todos os sonhos brumos
de estranhos, vagos, estrelados rumos
onde as Visões do amor dormem geladas...
Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
formem, com claridades e fragrâncias,
a encarnação das lívidas Amadas!
Cruz e Souza
Nada Sei
Não me perguntes, porque nada sei
Da vida,
Nem do amor,
Nem de Deus,
Nem da morte.
Vivo,
Amo,
Acredito sem crer,
E morro, antecipadamente,
Ressuscitando.
O resto são palavras,
Que decorei,
De tanto as ouvir.
E a palavra,
É o orgulho do silêncio envergonhado.
Num tempo de ponteiros, agendado,
Sem nada perguntar,
Vê, sem tempo, o que vês
Acontecer.
E na minha mudez,
Aprende a adivinhar,
O que de mim não possas entender.
Miguel Torga
Advento 2
Penosamente nos fomos alheando,
e agora quer assassinar-me a alma
esta mísera solidão angustiada.
Nenhuma esperança que faça inflar as velas.
Só este sossego branco e amplo
que o meu querer inativo
escuta em medo sufocante.
E eras bela. Em teu olhar pareciam
a noite e o sol triunfalmente unir-se.
Foi assim que o meu amor veio coroar-te.
E a minha saudade pálida das noites,
vendada de branco como uma vestal,
de pé junto às colunas do templo da tua alma
espalhava, sorrindo, flores brancas.
Rainer Maria Rilke
Noturno
Espírito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a Lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento...
Como um canto longínquo - triste e lento-
Que voga e sutilmente se insinua,
Sobre o meu coração que tumultua,
Tu vestes pouco a pouco o esquecimento...
A ti confio o sonho em que me leva
Um instinto de luz, rompendo a treva,
Buscando. entre visões, o eterno Bem.
E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de Ideal, que me consome,
Tu só, Gênio da Noite, e mais ninguém!
Antero de Quental
Despedida
Ventura que nunca tive,
paz irreal que nunca veio.
A vida fecha o horizonte,
chega a noite sem rumor.
Cala-se a voz. (já era tímida).
Meu eco morre aqui mesmo.
Que importa à sombra que desce
o grito que não se ouviu?
Emílio Moura
Água Nascendo
Fiz castelos de areia
sonhos de vento
abri cavernas no mar
construí segredos
teci com teias de luz
as mais delicadas
roupagens
inventei carruagens
adornadas de estrelas
para o dia
em que te encontrasse
e quando te vi
o amor era simples
o amor não pedia
nada mais
do que o milagre
da água nascendo.
Roseana Murray
No coração talvez
No coração, talvez, ou diga antes:
Uma ferida rasgada de navalha,
Por onde vai a vida, tão mal gasta.
Na total consciência nos retalha.
O desejar, o querer, o não bastar,
Enganada procura da razão
Que o acaso de sermos justifique,
Eis o que dói, talvez no coração.
José Saramago
Madrigal
Foi milagre? Ideia louca.
Mas que mais posso dizer
Desta profunda alegria
De ver a alma aparecer
No riso da tua boca?
Ainda se fosse a tua,
Entendia,
Mas a minha que faz lá?
Parece um caso de lua
(Tais coisas não são de cá)
Andar-me a alma contigo:
Foi milagre, Bem o digo.
José Saramago
Pretérito Perfeito
Naquela noite fez tanto luar,
Que tudo se iluminava...
Como uma chuva de prata...
As estrelas com um brilho sem igual,
Era realmente uma noite especial!
O mormaço invadia todo o espaço,
Uma brisa com perfume de maçã,
Os casais andavam abraçados,
Trocando eternas juras de amor,
Com suaves beijos e olhares ternos.
Serenatas ouviam-se ao longe,
Toda a cidade em prateado de amor,
Até as senhoras mais recatadas,
Nesta noite vestiram-se de cores,
E saíram para encontrar seus amores!
E quando a madrugada ia alta,
O silêncio era o que mais se ouvia,
Ah, como me lembro das noites,
Que há anos ficaram para trás,
Pretérito Perfeito, não volta mais!
Reggina Moon
Retrato em Luar
Meus olhos ficam neste parque,
minhas mãos no musgo dos muros,
para o que um dia vier buscar-me,
entre pensamentos futuros.
Não quero pronunciar teu nome,
que a voz é o apelido do vento,
e os graus da esfera me consomem
toda, no mais simples momento.
São mais duráveis a hera, as malvas,
que a minha face deste instante.
mas posso deixá-la em palavras,
gravada num tempo constante.
Nunca tive os olhos tão claros
e o sorriso em tanta loucura.
Sinto-me toda igual às arvores:
solitária, perfeita e pura.
Aqui estão meus olhos nas flores,
meus braços ao longo dos ramos:
e, no vago rumor das fontes,
uma voz de amor que sonhamos.
Cecília Meireles
Renúncia
Se eu cheguei a esta renúncia total, foi porque o meu sofrimento me transfigurou sem que eu o percebesse.
Aqui estou, tímido e humilde.
Parece que aqui estou há séculos.
Meus olhos já não compreendem outra realidade.
A realidade que amei dorme na sombra.
Emílio Moura
A física do susto
O espelho caiu a parede.
Caiu com ele o meu rosto.
Com o meu rosto a minha sede.
Com a minha sede eu desgosto.
O meu desgosto de olhar,
no espelho caído, o meu rosto.
Cassiano Ricardo
Se eu pudesse
Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe uma paladar,
Seria mais feliz um momento …
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural…
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva …
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica…
Assim é e assim seja …
Fernando Pessoa
Uma após Uma
Uma após uma as ondas apressadas
Enrolam o seu verde movimento
E chiam a alva espuma
No moreno das praias.
Uma após uma as nuvens vagarosas
Rasgam o seu redondo movimento
E o sol aquece o espaço
Do ar entre as nuvens escassas.
Indiferente a mim e eu a ela,
A natureza deste dia calmo
Furta pouco ao meu senso
De se esvair o tempo.
Só uma vaga pena inconsequente
Pára um momento à porta da minha alma
E após fitar-me um pouco
Passa, a sorrir de nada.
Ricardo Reis
EMOÇÃO...
Senti o sal
Dos olhos
Lendo-te!
Letras...
Signos...
Saudades!!!
Juli Lima
Publicado no Recanto das Letras em 12/01/2008
Código do texto: T813745
Paraíso
Aberta ao mundo como um grande ouvido
- nada entre o buscado e o buscador -,
senta-se a criança no degrau de pedra
e olha.
Ela é inteiramente o que contempla:
não a flor, mas o espaço fora
das coisas.
Nessa liberdade
sua pequena mão contorna desenhos
que nem a minha lucidez
alcança.
Não quero indagar se faz sentido,
nem a chamo para o cotidiano:
nada que eu lhe possa mostrar
vale o seu olhar
de agora.
Lya Luft
Fica a paz…
Fica a paz de um canto triste
dos riachos que vão embora,
vem a tarde e o canto insiste
nos meus ouvidos de aurora.
Resta uma chama encostada
numa sombra sem memória,
fica a noite e um quase nada
do que fora a minha história.
Não sou mais aquela infância
debruçada em teus terraços.
Vais!... E deixas a Esperança
desmaiada nos meus braços.
O homem nasce e vira glória
quando é pedra e vira a flor:
Deus então mais comemora
quando é barro e vira amor.
Afonso Estebanez
Soneto da desesperança
De não poder viver sua esperança
Transformou-a em estátua e deu-lhe um nicho
Secreto, onde ao sabor do seu capricho
Fugisse a vê-la como uma criança.
Tão cauteloso fez-se em seus cuidados
De não mostrá-la ao mundo, que a queria
Que por zelo demais, ficaram um dia
Irremediavelmente separados.
Mas eram tais os seus ciúmes dela
Tão grande a dor de não poder vivê-la,
Que em desespero, resolveu-se: - Mato-a!
E foi-se assim que triste como um bicho
Uma noite subiu até o nicho
E abriu o coração diante da estátua.
Vinicius de Moraes
Um Poema
O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê
O poema alguém o dirá
Às searas
Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento
O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento
No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas
(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)
Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas
E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Assim, sem nada feito e o por fazer
Assim, sem nada feito e o por fazer
Mal pensado, ou sonhado sem pensar,
Vejo os meus dias nulos decorrer,
E o cansaço de nada me aumentar.
Perdura, sim, como uma mocidade
Que a si mesma se sobrevive, a esperança,
Mas a mesma esperança o tédio invade,
E a mesma falsa mocidade cansa.
Tênue passar das horas sem proveito,
Leve correr dos dias sem ação,
Como a quem com saúde jaz no leito
Ou quem sempre se atrasa sem razão.
Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer,
E a tarde exterior seu tédio verte
Sobre quem nada fez e nada quere.
Inútil vida, posta a um canto e ida
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solentemente por ser lida,
Ah, deixem-se sonhar sem esperar!
Fernando Pessoa
Advento 1
A minha luta é esta:
sagrado de saudade
divagar pelos dias.
Depois, largo e forte,
com mil raízes fundo
mergulhar vida dentro —
e, amadurecido em dor,
ir longe para além da vida,
longe, para além do tempo.
Minha solidão sagrada,
és tão rica e pura e ampla
como um jardim que desperta.
Sagrada solidão minha —
fecha as tuas portas de ouro
ante os desejos que esperam.
O dia adormece manso, —
vagueio longe dos homens…
Despertos, em vasto círculo,
eu — e uma estrela pálida.
Seu olhar de luz entretecido
repousa claro e cintilante em mim;
parece estar, lá no céu,
tão só como eu aqui…
Rainer Maria Rilke
Hora
Vou no caminho esparso, à luz difusa
Do longo amanhecer: o sol não falta
Ao encontro marcado no silêncio
Da noite que se afasta.
A certeza do sol, a madrugada,
O meu corpo de terra, descoberto
Nesta rosa doirada que da morte
Traz a vida tão perto.
José Saramago
O mar
O mar é triste como um cemitério,
Cada rocha é uma eterna sepultura
Banhada pela imácula brancura
De ondas chorando num albor etéreo.
Ah! dessas no bramir funéreo
Jamais vibrou a sinfonia pura
Do amor; só descanta, dentre a escura
Treva do oceano, a voz do meu saltério!
Quando a cândida espuma dessas vagas,
Banhando a fria solidão das fragas,
Onde a quebrar-se tão fugaz se esfuma.
Reflete a luz do sol que já não arde,
Treme na treva a púrpura da tarde,
Chora a saudade envolta nesta espuma!
Augusto dos Anjos
Lar
versos incrustados na pele
sussurros adiados na espera
o corpo revestido de alma
onde o lar do paraíso vibra
nos desejos da pele despida
essência, lume e som
(o silêncio ora em nós)
Luiza Maciel Nogueira
Alegria
Já ouço gritos ao longe
Já diz a voz do amor
A alegria do corpo
O esquecimento da dor
Já os ventos recolheram
Já o verão se nos oferece
Quantos frutos quantas fontes
Mais o sol que nos aquece
Já colho jasmins e nardos
Já tenho colares de rosas
E danço no meio da estrada
As danças prodigiosas
Já os sorrisos se dão
Já se dão as voltas todas
Ó certeza das certezas
Ó alegria das bodas
José Saramago
Descaminhos
Como afagar teus sonhos,
se teu pensar vai distante,
entre as brumas do passado
e o amanhã, que o tempo esconde?
Como embalar-te a alma,
se em fiel vagar por sendas
da tênue veracidade
dos silêncios constelados?
Como ancorar-te o corpo,
no abrigo dos meus permeios,
se teu barco singra mares
de solidão consentida?
Não são reais teus reclamos
de meus passos peregrinos;
se acompanhas as pegadas,
ver-me-ás seguindo a ti.
Patricia Neme
Cenário
Quis-te inerte
a galopar na brisa
do inverno que me paralisa
Dei-te amor,
acima das fadigas,
tormentas e sortilégios,
incansável como o sol das manhãs
silenciando o cenário da tua ausência
Tive teu olhar
na pureza do azul e branco
limitando a resistência da alma
fazendo do meu mundo
esta grande magia
Tuas palavras chegaram
como tempestades,
instigando sons inteiriços
fustigando o destino que falece
Conceição Bentes
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