Do profundis

















Senhor, que sabes quem sou,
Sabe lá também o resto:
Sabe lá que o meu protesto
Não é isto que tu vês…
Não é isto…
Nem a facada do teu filho Cristo…
Nem o pranto que tens visto
Correr em lava a teus pés…

Não é isto,
Nem o sonho de Babel…
Nem o bombo que fiz da minha pele…
Foram gestos que passaram
Pelo meu corpo e roubaram
Um perfume que julgaram
Que era meu…

Não é isto, nem aquilo
Que um mocho a cantar de grilo
Te mandou com um sinal
Da grande dor que me dói…
Só é sinal do meu todo
Esta elegia do lodo,
Que não foi…

Não é isto,
Nem o muito que há-de vir:
O sarro que há-de sair
Da vazante da maré…
O fundo do mar é sujo,
Mas nos olhos do marujo
Não se vê…

Não é isto, nem é nada
Que chegue à tua morada
Sem a minha assinatura,
Que sou eu…
Eu, esta ovelha ranhosa
Que remói silenciosa
A lembrança dolorosa
Do pastor que lhe bateu.


Miguel Torga, em "O Outro Livro de Job".

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