Renovo





















Muitas vezes penso em me entregar
Pois meus olhos não vêem esperança
Mas apenas a dor de não ser o que queria
O homem que tanto desejo ser


Penso nas pessoas que me decepcionam
Na frieza e na solidão de cada fim de semana
Nas lutas que se mostram tão grandes
E na ausência de quem me apóie contra o inimigo


E, então, meus olhos se enchem de lágrimas
E choro um choro que ninguém vê nem ouve
Filho da dor e da solidão,
Da fraqueza e da decepção


Mas não me deixas caído
E, embora sejam poucos os que me ouçam
E seja grande a minha rebeldia contra Ti
Ainda assim, me amas e me resgatas


Acaba-se a força e a esperança
Vêm a tristeza e o desespero
Mas Tu sempre me acalmas
E renovas meu ânimo e minha força


Helder Nozima

Procuro-te





















Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.


Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.


Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.


Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.


Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.


Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.


Eugénio de Andrade

Renúncia























Renunciar. Todo o bem que a vida trouxe,
toda a expressão do humano sofrimento.
A gente esquece assim como se fosse
um vôo de andorinha em céu nevoento.


Anoiteceu de súbito. Acabou-se
tudo... A miragem do deslumbramento...
Se a vida que rolou no esquecimento
era doce, a saudade inda é mais doce.


Sofre de ânimo forte, alma intranqüila!
Resume na lembrança de um momento
teu amor. Olha a noite: ele cintila.


Que o grande amor, quando a renúncia o invade
fica mais puro porque é pensamento,
fica muito maior porque é saudade.


Olegário Mariano

Romance



























Subiam do silêncio do jardim,
para a janela aberta do aposento,
perfumes brancos, de jasmim...
Dentro, num ritmo sonolento,
alguém abria o luar de um noturno nevoento
sobre o teclado de marfim.


Depois, um beijo alto e violento...
E houve por tudo um estremecimento,
uma angústia de fim...
E o beijo, num momento,
misturou-se ao perfume do jasmim
e ao noturno nevoento
que ressoava no aposento...


Hoje, para evocar o que passou, assim
como tudo que passa ao vento,
alguém acorda no teclado de marfim
um noturno nevoento...
E, da janela do aposento
sobre o siloêncio do aposento
sobre o silêncio do jardim,
procura aquele beijo violento
num perfume de jasmim...


Onestaldo de Pennafort

EU




















Eu, eu mesmo…
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar. —
Eu…
Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças…
Que crianças não sei…
Eu…
Imperfeito? Incógnito? Divino?
Não sei…
Eu…
Tive um passado? Sem dúvida…
Tenho um presente? Sem dúvida…
Terei um futuro? Sem dúvida…
A vida que pare de aqui a pouco…
Mas eu, eu…
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu…


Álvaro de Campos

Fim de Jornada





















Caminhar ao encontro da noite.
Como o camponês regressa ao lar.
Após um longo dia de verão.
Sem pressa ou cuidado.
Na tarde ouro e cinza.
Sozinho entre os campos lavrados.
E as colinas distantes.
Caminhar, ao encontro da noite.
Sem pressa ou cuidado.
A noite é somente uma pausa de sombra.
Entre um dia e outro dia.


Helena Kolody

Versos sem Rumo...


























A saudade de mim se despede,
Uma a uma salga-me a face
Gotas que findam entre meus lábios
Umedecendo meus suspiros


Rubra saudade
Do peito rasgado
Da alma desfolhada
Da tristeza versejada


Sufocante sentir
Que palavras não traduzem
E que todas as lágrimas do mundo
Não conseguem aliviar a angústia


Torturada a alma
Que só pensa em ti
Acalentando o sonho
De voar com tuas asas


Juli Lima

Publicado no Recanto das Letras em 31/08/2007
Código do texto: T632877

Penumbra


























Minha cabeça afaga o meu cansaço
Como uma luz no coração da sombra;
Corpo da sombra, coração da terra,
Rima do verso branco que sou eu.


Qual uma rosa que fizesse falta
Às ruas murchas de não serem rios,
Embalo a sombra como um berço estéril,
Antecipando o último berço imóvel.


Felizmente ainda venta no destino.
Ainda o perfume comparece às flores.
Sim! Afinal, a vida é uma verdade


(Por que falei tão alto, se acredito?)!
Meu cansaço fecunda a minha sombra –
A morte amanheceu, quase nasci!


Homero Frei

Guardei-me pra ti...



























Guardei-me para ti como um segredo
Que eu mesma não desvendei:


Há notas nesta guitarra que não toquei,
Há praias na minha ilha que nem andei.


É preciso que me tomes, além do riso e do olhar,
Naquilo que não conheço e adivinhei;


É preciso que me ensines a canção do que serei
E me cries com teu gesto,


Que nem sonhei.


Lya Luft

Casa Trancada


























Que tipo de casa suburbana é o meu peito
Que guarda entre os seus cômodos vazios,
Vultos, sonhos e os anseios mais sombrios
Que de uma criatura singular é de direito?


Que dores percorrem o corredor estreito
E separa o imóvel como margens de um rio?
Qual foi o erro ou desengano que fez vazio
O espaço outrora alegre que envolve o leito?


Casa vazia. Triste como qualquer casa vazia.
Casa que apagou o sorriso de quem se ria
E se trancou com portas e janelas gradeadas.


Casa vadia. Triste como qualquer casa vadia,
Mas nas paredes ainda há quadros e fotografias
Enquanto a vida roda e continua na calçada.


Danilo del Monte

Publicado no Recanto das Letras em 06/11/2010
Código do texto: T2601038

O acusado





















Quando eu nasci, já as lágrimas que eu havia
De chorar, me vinham de outros olhos.


Já o sangue que caminha em minhas veias pro futuro
Era um rio.


Quando eu nasci já as estrelas estavam em seus lugares
Definitivamente
Sem que eu lhes pudesse, ao menos, pedir que influíssem
Desta ou daquela forma, em meu destino.


Eu era o irmão de tudo: ainda agora sinto a nostalgia
Do azul severo, dramático e unânime.
Sal — parentesco da água do oceano com a dos meus olhos,
Na explicação da minha origem.


Quando eu nasci, já havia o signo do zodíaco.


Só, o meu rosto, este meu frágil rosto é que não
Quando eu nasci.


Este rosto que é meti, mas não por causa dos retratos
Ou dos espelhos.


Este rosto que é meu, porque é nele
Que o destino me dói como uma bofetada.
Porque nele estou nu, originalmente.
Porque tudo o que faço se parece comigo.
Porque é com ele que entro no espetáculo.
Porque os pássaros fogem de mim, se o descubro
Ou vêm pousar em mim quando eu o escondo.


Cassiano Ricardo

A Guerra




















A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.
A guerra, como tudo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.
Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.
Deixemos o universo exterior,
e os outros homens onde a Natureza os pôs.
Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer cousas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.
A química direta da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.
A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.
Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as cousas pré-humanas, mesmo no homem!
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!


Alberto Caeiro

Entre partir e ficar



















Entre partir e ficar hesita o dia,
enamorado de sua transparência.
A tarde circular é uma baía:
em seu quieto vai e vem se move o mundo.
Tudo é visível e tudo é ilusório,
tudo está perto e tudo é intocável.
Os papéis, o livro, o vaso, o lápis
repousam à sombra de seus nomes.
Pulsar do tempo que em minha têmpora repete
a mesma e insistente sílaba de sangue.
A luz faz do muro indiferente
Um espectral teatro de reflexos.
No centro de um olho me descubro;
Não me vê, não me vejo em seu olhar.
Dissipa-se o instante. Sem mover-me,
eu permaneço e parto: sou uma pausa.


Octavio Paz

Segmentos
























E o homem seguiu entre guizos falsos.
Trazia no rosto uma sofreguidão de charcos.


Era noite
e os fantasmas enlouquecidos não o deixavam seguir.


Assim
andarilho de madrugadas
homem de silêncios fartos
ele se enfatizou.


Riscou de seu rosto a mascara da vida.


Continuava só
e só, continuava em sua busca viscosa.


Já não era mais ele quem fremia
na porta dos bares vazios.


Era a nostalgia de seu espectro
que buscava carnavais de sorrisos.


Alvina Nunes Tzovenos

Surto poético

















Revelo meu querer, numa variação!
... Eternas lembranças...
Sou menor, apenas o pó, poesia envolta
Gota no oceano de esperanças


A poesia sublimação voluntaria do ser
Jorra do poeta que ama... Que ama escrever
E fala de seus mistérios, segredos de sua alma
Do silêncio propício ao amor que lhe acalma


Não me negarei palavras, jogá-las-ei aos ventos
Que rebusquem meus pensamentos alados
Sem nunca os entender, de que valem os
Mistérios revelados?


Poesia vertente salutar...
Partículas de amor espalhadas pelo ar
Em cada gota desfaz-se um sentir
E por cada gota faz-se existir


Poesia, expande, eclode seus versos de amor
Eternize-se em mim, mera mortal indefesa
Que a ti me rendo coesa.
Para livrar-me de toda tristeza e dor.


Silviah Carvalho
Publicado no Recanto das Letras em 03/11/2010
Código do texto: T2595365

O fogo que na branda cera ardia



























O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que eu na alma vejo,
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.


Como de dous ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.


Ditosa aquela flama, que se atreve
A apagar seus ardores e tormentos
Na vista de que o mundo tremer deve!


Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela neve
Que queima corações e pensamentos.


Luis Vaz Camões

Provavelmente





















Provavelmente, o campo demarcado
Não basta ao coração nem o exalta;
Provavelmente, o traço da fronteira
Contra nós, amputados, o riscamos.
Que rosto se promete e se desenha?
Que viagem prometida nos espera?
São asas( que só duas fazem voo).
Ou solitário arder de labareda?


José Saramago

Cola-tudo



























Encontrei um verso fraturado,
caído na esquina da rua do lado,
Tinha se perdido de um coração saudoso
que passava por ali, desiludido.


Coloquei-o de pé,
emendei seus pedaços,
refiz suas linhas,
retoquei seus traços.


Afaguei suas dores como se fossem minhas.
Agora, novamente estruturado,
espero que ele não olhe para trás
e não misture sonhos
com amargas falências do passado;


que saiba enfeitar a estrela lá na frente
com fartos laços de rima colorida.
pois é para o futuro que caminham
todos os passos apressados desta vida.


Flora Figueiredo

Noturno




















Quem tem coragem de perguntar, na noite imensa?
E que valem as árvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte?


Que vale o pensamento humano,
esforçado e vencido,
na turbulência das horas?


Que valem a conversa apenas murmurada,
a erma ternura, os delicados adeuses?


Que valem as pálpebras da tímida esperança,
orvalhadas de trêmulo sal?


O sangue e a lágrima são pequenos cristais sutis,
no profundo diagrama.


E o homem tão inutilmente pensante e pensado
só tem a tristeza para distingui-lo.


Porque havia nas úmidas paragens
animais adormecidos, com o mesmo mistério humano:
grandes como pórticos, suaves como veludo,
mas sem lembranças históricas,
sem compromissos de viver.


Grandes animais sem passado, sem antecedentes,
puros e límpidos,
apenas com o peso do trabalho em seus poderosos flancos
e noções de água e de primavera nas tranqüilas narinas
e na seda longa das crinas desfraldadas.


Mas a noite desmanchava-se no oriente,
cheia de flores amarelas e vermelhas.
E os cavalos erguiam, entre mil sonhos vacilantes,
erguiam no ar a vigorosa cabeça,
e começavam a puxar as imensas rodas do dia.


Ah! o despertar dos animais no vasto campo!
Este sair do sono, este continuar da vida!
O caminho que vai das pastagens etéreas da noite
ao claro dia da humana vassalagem!


Cecília Meireles

O Lutador



























Buscou no amor o bálsamo da vida,
Não encontrou senão veneno e morte.
Levantou no deserto a roca-forte
Do egoísmo, e a roca em mar foi submergida!


Depois de muita pena e muita lida,
De espantoso caçar de toda sorte,
Venceu o monstro de desmedido porte
- A ululante Quimera espavorida!


Quando morreu, línguas de sangue ardente,
Aleluias de fogo acometiam,
Tomavam todo o céu de lado a lado,


E longamente, indefinidamente,
Como um coro de ventos sacudiam
Seu grande coração transverberado!


Manuel Bandeira

A rua




























Bem sei que, muitas vezes,
O único remédio
É adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
A dívida, o divertimento,
O pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
De continuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
Numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas,
Esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.


A esperança
Nunca é a forma burguesa, sentada e tranqüila da espera.
Nunca é figura de mulher
Do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.


Cassiano Ricardo

Um Sopro de Vida



















Não aguento muito tempo um sentimento
porque passo a ter angústia
e meu pensamento fica ocupado com o sentimento
e eu me desvencilho dele de qualquer jeito
para ganhar de novo a minha liberdade de espírito.


Sou livre para sentir. Quero ser livre para raciocinar.
Aspiro a uma fusão de corpo e alma.


Não consigo compreender para os outros.


Só na desordem de meus sentimentos é que compreendo
para mim mesma e é tão incompreensível o que eu sinto
que me calo e medito sobre o nada.


Clarice Lispector

Carpem Diem



























Confias no incerto amanhã?
Entregas às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? "Não", dizes, "nada me obrigará
à renúncia de mim próprio --- nem esse olhar
que me oforece o leito profundo da sua imagem!"
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.


Nuno Júdice

A Mulher



















Ó Mulher! Como és fraca e como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!


Quantas morrem saudosa duma imagem.
Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca ri alegremente!


Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doce alma de dor e sofrimento!


Paixão que faria a felicidade.
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!


Florbela Espanca

Fadas e Bruxas



























Metade de mim é fada,
a outra metade é bruxa.
Uma escreve com o sol,
a outra escreve com a lua.

Uma anda pelas ruas
cantarolando baixinho,
a outra caminha de noite
dando de comer à sua sombra.


Uma é séria, a outra sorrí;
uma voa, a outra é pesada.
Uma sonha dormindo...
a outra sonha acordada.


Roseana Murray

Abismal



























Meus olhos estão olhando
De muito longe, de muito longe,
Das infinitas distâncias
Dos abismos interiores.
Meus olhos estão a olhar do extremo longínquo
Para você que está diante de mim.
Se eu estendesse a mão, tocaria a sua face.


Helena Kolody

Canção para poder viver





















Dou-lhe tudo do que como,
e ela me exige o último gomo.


Dou-lhe a roupa com que me visto
e ela me interroga: só isto?


Se ela se fere num espinho,
O meu sangue é que é o seu vinho.


Se ela tem sede eu é que choro,
no deserto, para lhe dar água:


E ela mata a sua sede,
já no copo de minha mágoa


Dou-lhe o meu canto louco; faço
um pouco mais do que ser louco.


E ela me exige bis, "ao palco"!


Cassiano Ricardo

Olhando-se


























O espelho enche-se com a tua
imagem; e queria tirá-lo da tua
mão, e levá-lo comigo, para
que o teu rosto me acompanhe
onde quer que eu vá.


Mas sem ti, o espelho
fica vazio; e ao olhá-lo, vejo
apenas o lugar onde estiveste, e
os olhos que os meus olhos procuram
quando não sei onde estás.


Por que não fechas os olhos
para que o espelho te prenda, e
outros olhos te possam guardar,
para sempre, sem que tenham de olhar,
no espelho, o rosto que eu procuro?


Nuno Júdice

Anti-char




















Poesia intransitiva,
sem mira e pontaria:
sua luta com a língua acaba
dizendo que a língua diz nada.


É uma luta fantasma,
vazia, contra nada;
não diz a coisa, diz vazio;
nem diz coisas, é balbucio.


João Cabral de Melo Neto

Valsa de Adeus





















Tudo é partida de navio, velas
ao vento, coisas desancoradas
que se desgarram. Este copo, esta pedra
que pronuncio não são palavras, nem
versos de amor, nem o sopro
vivificante do espírito. São barcos
arrastados pelo tempo, cascas
de fruta na enxurrada, lenços
de adeus, enquanto o vapor se afasta,
e de longe ilumina essa ausência que somos.


Hélio Pellegrino

Contabilidade





















Viver é perder a vida.
Mais estou vivo e mais perco.
Na minha vida perdida
quanto mais ganho mais devo.


Quanto mais estou vivendo
mais cresce o meu não-viver.
À sombra do que estou sendo
mais vou deixando de ser.


Cada vez sou menos mais
e sou mais menos na conta
de somar que me subtrai.


Morrer é perder a morte?
No recorte das montanhas
o crespúsculo desponta.


Lêdo Ivo

O Tempo seca o Amor

O tempo seca a beleza, seca o amor, seca as palavras. Deixa tudo solto, leve, desunido para sempre como as areias nas águas. O tempo seca a ...

Nos últimos 30 dias.