O Tempo seca o Amor





















O tempo seca a beleza,
seca o amor, seca as palavras.
Deixa tudo solto, leve,
desunido para sempre
como as areias nas águas.

O tempo seca a saudade,
seca as lembranças e as lágrimas.
Deixa algum retrato, apenas,
vagando seco e vazio
como estas conchas das praias.

O tempo seca o desejo
e suas velhas batalhas.
Seca o frágil arabesco,
vestígio do musgo humano,
na densa turfa mortuária.

Esperarei pelo tempo
com suas conquistas áridas.
Esperarei que te seque,
não na terra, Amor-Perfeito,
num tempo depois das almas.


Cecília Meireles

OS DOIS LADOS




No outro lado da noite alguém gritava.
No outro lado do muro eles se amavam
e espalhavam murmúrios e gemidos.

Todas as portas estavam fechadas.
A vida era um segredo, era um suspiro.
E o amor lavrava doido e revirado.

Amar de um lado só já não bastava?
Era cara e coroa, era em dois lados,
moeda que a si mesma se pagava.


Lêdo Ivo.

Árias Pequenas. Para Bandolim














Antes que o mundo acabe, Túlio,

Deita-te e prova
Esse milagre do gosto
Que se fez na minha boca
Enquanto o mundo grita
Belicoso. E ao meu lado
Te fazes árabe, me faço israelita
E nos cobrimos de beijos
E de flores

Antes que o mundo se acabe
Antes que acabe em nós
Nosso desejo.


Hilda Hilst

Mar absoluto














Foi desde sempre o mar,
E multidões passadas me empurravam
como o barco esquecido.

Agora recordo que falavam
da revolta dos ventos,
de linhos, de cordas, de ferros,
de sereias dadas à costa.

E o rosto de meus avós estava caído
pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas,
e pelos mares do Norte, duros de gelo.

Então, é comigo que falam,
sou eu que devo ir.
Porque não há ninguém,
tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos.

E tenho de procurar meus tios remotos afogados.
Tenho de levar-lhes redes de rezas,
campos convertidos em velas,
barcas sobrenaturais
com peixes mensageiros
e cantos náuticos.

E fico tonta.
acordada de repente nas praias tumultuosas.
E apressam-me, e não me deixam sequer mirar a rosa-dos-ventos.
“Para adiante! Pelo mar largo!
Livrando o corpo da lição da areia!
Ao mar! – Disciplina humana para a empresa da vida!”
Meu sangue entende-se com essas vozes poderosas.
A solidez da terra, monótona,
parece-mos fraca ilusão.
Queremos a ilusão grande do mar,
multiplicada em suas malhas de perigo.

Queremos a sua solidão robusta,
uma solidão para todos os lados,
uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo,
e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia.

O alento heróico do mar tem seu pólo secreto,
que os homens sentem, seduzidos e medrosos.

O mar é só mar, desprovido de apegos,
matando-se e recuperando-se,
correndo como um touro azul por sua própria sombra,
e arremetendo com bravura contra ninguém,
e sendo depois a pura sombra de si mesmo,
por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.

Não precisa do destino fixo da terra,
ele que, ao mesmo tempo,
é o dançarino e a sua dança.

Tem um reino de metamorfose, para experiência:
seu corpo é o seu próprio jogo,
e sua eternidade lúdica
não apenas gratuita: mas perfeita.

Baralha seus altos contrastes:
cavalo, épico, anêmona suave,
entrega-se todos, despreza ritmo
jardins, estrelas, caudas, antenas, olhos, mas é desfolhado,
cego, nu, dono apenas de si,
da sua terminante grandeza despojada.

Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões:
água de todas as possibilidades,
mas sem fraqueza nenhuma.

E assim como água fala-me.
Atira-me búzios, como lembranças de sua voz,
e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino.

Não me chama para que siga por cima dele,
nem por dentro de si:
mas para que me converta nele mesmo. É o seu máximo dom.
Não me quer arrastar como meus tios outrora,
nem lentamente conduzida.
como meus avós, de serenos olhos certeiros.

Aceita-me apenas convertida em sua natureza:
plástica, fluida, disponível,
igual a ele, em constante solilóquio,
sem exigências de princípio e fim,
desprendida de terra e céu.

E eu, que viera cautelosa,
por procurar gente passada,
suspeito que me enganei,
que há outras ordens, que não foram ouvidas;
que uma outra boca falava: não somente a de antigos mortos,
e o mar a que me mandam não é apenas este mar.

Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças,
mas outro, que se parece com ele
como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.
E entre água e estrela estudo a solidão.

E recordo minha herança de cordas e âncoras,
e encontro tudo sobre-humano.
E este mar visível levanta para mim
uma face espantosa.

E retrai-se, ao dizer-me o que preciso.
E é logo uma pequena concha fervilhante,
nódoa líquida e instável,
célula azul sumindo-se
no reino de um outro mar:
ah! do Mar Absoluto.


Cecília Meireles, no livro “Mar absoluto”. 1945.

No Ombro das Coisas






























Como recolher-te, povo,no ombro das coisas?

Preciso juntar tua bandeira
no caminho
do sol, das oliveiras.

Preciso recolher-te
onde não minto
e sou rebelde.

Pão.
Prego, espectro.
A alma imortal
e a outra alma
que é povo.

Casaco batido e longo,
o tempo se adivinha.
Tu também te adivinhas
cada manhã, embora
em fatias. A aurora
te adivinha na pura
distração, sem nuvem.
O menino ao nascer te adivinha
e é o mundo
chorando, adivinhando
o outro lado. O escuro.
É teu lábio: respiras.

Em cacos teu espelho.
Em cacos e sementes.
Já viajam sem ver-te.

E vão-se estilhaços
de ti, vão-se de braços
com o ar, as horas todas.
E o meu velho desespero.

O povo é remo
e a pátria, imóvel barco.

Teus fragmentos viajam
absurdos, indomáveis
e recolher-te, faz-me
nascer de novo.

Bendito seja o teu fruto,
América. Bendito seja
o ventre que tanto amei
e escuto pulsar, povo.
Teu fruto
no pomar da memória.

Quero-te inteiro. Ouso
por ti sofrer.
Vou recolher-te, fio
a fio. Medo a medo.
E quando fores completo,
virás me recolher.


Carlos Nejar 

Publicado no livro Árvore do mundo (1977).

In: NEJAR, Carlos. A genealogia da palavra. Introd. Eduardo Portella. São Paulo: Iluminuras, 1989. p.113-11

Cantaremos




Ao longo de longos séculos da história

Foste o continente do ouro e do sabão
E teus filhos os filhos da fome e do chocote

Em tempos muitos que já lá vão
Em tuas terras floresceram as riquezas
E teus filhos
( então filhos do tam-tam e do sol)
viveram a felicidade do não à exploração

então vieram caravelas
trazendo homens de cor estranha
( e estranhos pensamentos )
que cobiçaram a força simples
dos teus filhos perfeitos

e descendo um a um
os degraus do vicio da corrupção e da traição
começaram a comprar e vender teus filhos
não mais homens
não mais africanos
abjectamente escravos

barracões
navios negreiros
porões
sol suor chicote morte
e homens animais
( sub-homens )
é tudo o que de ti narra a história
nessa época de genocídio em solo africano

até que a escravatura passou
( os escravos porém ficaram )

ouro diamante petróleo
teu solo era rico
e homens cada vez mais abjectos
cada vez mais queriam possuir teus bens

e ficou-nos
( gravada a ferro e fogo)
a memória do colonialismo
abismo sem fim de miséria servidão e ultraje

os anos rolaram sobre ti
continente exangue
até que o vento da revolução
soprou forte sobre o mundo

por ti
bandung deu o sinal
anunciando grandes mudanças
para as terras martirizadas de África

depois
teus filhos foram quebrando
as amarras que os prendiam
e
um a um
voltaram para ti
destruindo à passagem
os mitos que os opressores criaram
para que os pudessem
impunes
dominar

eis-nos agora África
os povos da guiné e caboverde
dos últimos dos teus filhos cativos

para nós a hora soou
quando o nosso povo gerou Cabral
e viu correr o sangue de pidjiguiti

eis-nos aqui África
e de joelhos sobre esta terra mártir
por ti
por nós
por todos
cantaremos hinos de louvor e esperança


Vera Duarte

Convívio

Theo-Szczepanski-Jornal-Rascunho


















Cada dia que passa incorporo mais esta verdade, de que eles não vivem senão em nós
e por isso vivem tão pouco; tão intervalado; tão débil.
Fora de nós é que talvez deixaram de viver, para o que se chama tempo.
E essa eternidade negativa não nos desola.
Pouco e mal que eles vivam, dentro de nós, é vida não obstante.
E já não enfrentamos a morte, de sempre trazê-la conosco.

Mas, como estão longe, ao mesmo tempo que nosso atuais habitantes
e nossos hóspedes e nossos tecidos e a circulação nossa!
A mais tênue forma exterior nos atinge.
O próximo existe. O pássaro existe,
E eles também existem, mas que oblíquos! e mesmo sorrindo, que disfarçados…

Há que renunciar a toda procura.
Não os encontraríamos, ao encontrá-los.
Ter e não ter em nós um vaso sagrado,
um depósito, uma presença contínua,
esta é nossa condição, enquanto,
sem condição, transitamos
e julgamos amar
e calamo-nos.

Ou talvez existamos somente neles, que são omissos, e nossa existência,
apenas uma forma impura de silêncio, que preferiram.


Carlos Drummond de Andrade, 

em “A família que me dei”, no livro “Carlos Drummond de Andrade – Antologia poética” [organizada pelo autor]. 54ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 98.

PÁROS
























Toda vez que te olhava,
buscava ver-te como eras
ou, como eras para mim.
Tudo costumava ser mais simples
e eu não percebia que nos amávamos
por sermos diferentes.
Onde quer que eu vá,
saberei que és tu – e não outro –
a quem amo mais.

Thereza Rocque da Motta 

in "Odysseus & O livro de Pandora" (Ibis Libris, 2012)
*O mármore da Vitória de Samotrácia foi extraído da Ilha de Páros, e a estátua foi estimada como de 190 a.C.

carta ao corso
















seguir pelas baías
de todos os santos.
arrebentar no mar
o corpo;
correr a onda contra
a onda;
entrever o além-terra.
pela luneta, só o voo
interessa.
a bússola, o quadrante,
a guia e o aço da espuma
que choca o casco da barca.
uma viagem sendo
motivo da viagem.
vento que golpeia a testa
e animal que braveja;
seus olhos salgados,
a brisa seca.
nessa ida - de curso que não cessa -
tolhe o homem sua sina:
“dos deuses,
só a Morte toca a vida.”


Luigi Caruso

Em Paz
















Perto do meu ocaso, eu te bendigo, ó Vida,
porque nunca me deste esperança falida
nem injusto trabalho ou pena imerecida;

porque, chegando ao fim de minha rude estrada,
vejo que arquitetei minha própria jornada;
que se os méis ou o fel eu extraí das cousas
foi que nelas pus mel ou biles amargosas:
se roseiras plantei, não colhi senão rosas.

Às minhas florações vem já render o inverno;
mas não te ouvi dizer que maio fosse eterno!
Longas noites velei em meio a acerbas penas;
mas quem me prometeu noites boas apenas?
E algumas tive, enfim, santamente serenas...

Sorriu-me o sol, amei e fui amado assaz.
Nada me deves, pois: Vida, estamos em paz!



EN PAZ

Muy cerca de mi ocaso, yo te bendigo, Vida,
porque nunca me diste ni esperanza fallida
ni trabajos injustos, ni pena inmerecida.

Porque veo al final de mi rudo camino
que yo fuí el arquiteto de mi propio destino;
que si extraje las mieles o la hiel de las cosas
fué porque en ellas puse hiel o mieles sabrosas:
cuando planté rosales, coseché siempre rosas.

Cierto, a mis lozanías va a seguir el invierno;
¡mas tu no me dijiste que Mayo fuese eterno!
...Hallé sin duda largas las noches de mis penas;
mas no me prometiste tú solo noches buenas;
y en cambio tuve algunas santamente serenas...

Amé, fuí amado, el sol acarició mi faz.
¡Vida, nada me debes! ¡Vida, estamos em paz!

Amado Nervo - Poemas selectos de Amado Nervo. Selección Enrique González Martínez. Ciudad de México: Frente de Afirmación Hispanista, 2015. 175 p. 14x21 cm. Portada: Amado Nervo, grabado publicado en 1920. Ex. bibl. Antonio Miranda
Tradução: Anderson Braga Horta

Cravos
























Ergui as mãos encravadas de calos
E desenhei teu rosto entalhando risos.
Vivi meus dias ouvindo meus sonhos
Ergui teu vulto em pedestal conciso...

Antevi tuas mãos em riscos precisos,
Ouvi tua voz pausada e ritmada...
Vivi as escuras meus sonhos furtivos...
Cravos, rosas e espinhos me ofertavam!

Quisera ter teu cheiro em mim agora!
Impregnando os sonhos que tracei...
Saciando minha sede atemporal!

Endeusado ficarás onde deixei
Fui covarde, fugi do amor que aflora...
Permanece meu mito imortal!


InezTeves

No mistério do sem-fim























No mistério do sem-fim
equilibra-se um planeta.

E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,

entre o planeta e o sem-fim,
a asa de uma borboleta


Cecília Meireles

Quarentena























Quando em mim
Era prisioneira,e pude sonhar com os pássaros
Ao se tornar tão intenso quanto o medo,
Tudo o que era mais forte fugiu primeiro
E me deixou
De tudo que era sol se perdeu
E a prisão,se fez de Pandora.

Minhas mãos ainda calejam
A sensação de estar cheias
Pra jorrar
Sinto saudades pois fiz disso minha parte
E agora vivo com a mente vaga tentando enxergar um novo bater de asas,
A prisão não é de se admirar
Mas me dói o fato de estar tão solitária ,
Quanto estas palavras.


Ana Lara Teixeira - oitentaeduas_luas.

Andorinha













Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…


Manuel Bandeira.

XXXIX















Sinto-me assim
fronteiriça e dual
ora
explodindo como olho d’água
correndo como rio caudaloso
de brava correnteza
ora
exausta como água de remanso
despida de tempo
inerte
à míngua do canto
e da dança dos ventos


XXXIX


Me siento así
al borde y dual
ora
explotando en luz como un espejo de agua
corriendo como río en su caudal
corriente valiente
ora
agotado como remanso
despojado de tiempo
inerte
en la esquina de la esquina
y la danza de los vientos


Wanda Monteiro

Tem textos publicados em revistas literárias como Acrobata, Gueto, InComunidade, Senhoras Obscenas, Mallamargens, Literatura Br. Autora das obras O Beijo da Chuva (Amazônia, 2008), ANVERSO (Amazônia, 2011), Duas Mulheres Entardecendo (parceria com Maria Helena Lattini, Tempo, 2015), Aquatempo (Literacidade, 2016) e A Liturgia do Tempo e outros silêncios (Patuá, 2019). Aquatempo - Aquatiempo lançado em fevereiro(2020) pela Editora Patuá, com tradução para espanhol por Bianca Lourenço Guzzo.

O Tempo seca o Amor

O tempo seca a beleza, seca o amor, seca as palavras. Deixa tudo solto, leve, desunido para sempre como as areias nas águas. O tempo seca a ...

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