Vinda do Oceano Revolto, a Multidão















1
Vinda do oceano revolto, a multidão, chegou suave a mim uma gota,
Sussurrando, eu te amo, antes que um dia eu morra,
Fiz uma longa viagem, para meramente te ver, te tocar,
Pois eu não podia morrer até eu te ver uma vez,
Pois eu temia poder depois te perder.


2
(Agora nos conhecemos, nos vimos, estamos seguros;
Retorne em paz ao oceano, meu amor;
Sou também parte deste oceano, meu amor – nós não estamos tão separados;
Contemple a grande curvatura – a coesão de tudo, como é perfeita!
Mas, quanto a mim, a você, o irresistível mar irá nos separar,
A hora nos carrega, distintos – mas não pode nos carregar assim para sempre;
Não seja impaciente – por um pequeno espaço – Eu te conheço, eu saúdo o ar, o oceano e a terra,
Todo dia, no ocaso, por você, meu amor.)



Walt Whitman

Central do Brasil

















Desde o primeiro que chega
Desde o primeiro que parte
Vontades em pernas e braços
Passam pela gare.

Algumas ainda dormindo caladas
Mas seguem seus caminhos
Carregando o peso dos sonhos.

Produzem uma melodia
Ensurdecedora
Nas lanchonetes de cafezinhos
Nos mais apressados
No balé dos corredores
Da estação de ferro D, Pedro II

Que entre trens que chegam
E trens que partem.
Entre o Império que parte
E a República que chega
Tornou-se Central do Brasil.

Com bailarinos ensaiados
Pelos ponteiros
De um relógio pessoal.
Da valsa ao samba
Cada um no seu ritmo
Matutino ou noturnal

Sonhos descem
Ao submerso
Seguem trilhos de novo
Sonhos atravessam
As avenidas
Buscando as calçadas
Calçadas tomadas
De sonhos
E também dos que não podem dormir.

Sonhos pegam ônibus
Táxis ou urbes
Sonhos vão de VLT
Sonhos andam a pé
Para economizar
E poder ter tempo de sonhar.
E o retorno do dia
A mesma pressa
Em uma melodia mais cansada
Do compromisso firmado
De continuar a música

O dia todo sonhos chegam
E sonhos partem
Até que o silêncio ecoa
Nas suas entranhas
E podemos dormir
Para sonhar de verdade.


Henrique Rodrigues Soares – Pra Fora/ Por Dentro




Geometria Civil























Eu tenho um corpo
feito de barro vil
mas cheio de deveres
e obediência civil.

Sou um transeunte
em dia com o código
da ética pedestre.
Não raro invento dívidas
só pelo prazer
de saldá-las, lesto,
antes do protesto.
Para depois entrar
entre os festões vermelhos,
num salão de baile
cumprimentando-me cordialmente
Exato no meu fato
azul, sob medida;
exato na cesura
de um verso alexandrino;
exato se combino
um encontro de dois,
pois chego à hora certa,
nem antes nem depois.
Exato — se procuro
te beijar no escuro
não erro a tua boca
entre os pontos cardiais
de minha geografia
amorosa;
enfim, sou tão exato
como é o número
do meu sapato.

Sofro, também, de ordem.
Da irrecorrível ordem
que aceitei por herança.
Em vão as vespas
da revolução me mordem.
Minha geometria
é uma coisa viva
feita de carne e osso.
Um ângulo quebrado
logo escorre sangue.
Todo o meu futuro
é um retângulo obscuro...

Estes meus dois braços
são linhas paralelas
que se cruzarão em viagem
para algum infinito.
A lua, esfera fria,
me ensinou, em garoto,
a riscar bolas de ouro,
sem compasso,
na aula de geometria.

Ah, eu sofro de ordem,
mas em vão;
pois não ganhei, com isso,
nenhum laurel, comenda,
ou condecoração.
E nem pertenço à Ordem
do Cruzeiro.
Pertenço — e é só — à ordem
em que estão colocadas,
no céu, as estrelas.
E à outra ordem —
a em que, no futuro,
estarão colocadas,
em redor do meu corpo,
quatro velas acesas...


Cassiano Ricardo

ATÉ AS RUÍNAS PODEMOS AMAR NESTE LUGAR
















Lembro-me muito bem do tal cantor basco
que costumava celebrar a chuva no verão
Não ligava quase nada para as conspirações
que recorrentemente se faziam ouvir
debaixo das arcadas noturnas da cidade
naquela época do intermezzo lunar
Foi já depois do fascismo, um pouco antes
da democracia enfaixada em magnólias
O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos
me ensinaram que se deve aproveitar a época
de transição para destrinçar o brilho
As revoluções sempre foram o lugar certo
para a descoberta do sossego:
talvez porque nenhuma casa é segura
talvez porque nenhum corpo é seguro
ou talvez porque depois de encarar uma arma
finalmente possa ser possível entender
as múltiplas possibilidades de uma arma.

Matilde Campilho - [in Jóquei, Tinta da China, 2014]















corto cebolas
com olhos ensopados
de águas esquecidas

a casa
há muito calou-se
sem motivo de banquete

corto cebolas
para domar o silêncio

a lâmina ceifando a vida em seiva

sinto-me como elas
talo, colo, pele
casca
raiz,
catafilos

como se partindo-me
em abas desamparáveis

Carlos Orfeu

Uma despedida















Eu que ao longo dos anos lhe cantei canções,
Parto
A haste rompeu-se
A jovem planta de ébano afunda no pântano.
Esses ventos ululam com sementes.
Hão de espalhá-las sobre o espaço aberto
Onde chuvas darão nascença a selvas.
Creio no grande dia
Que fará nossos caminhos se encontrarem:
Hei de acordar, pois, do deserto
Vendo você se aproximar com alguidares cheios d’água.
Sentaremos ao local do velho homem
Desatando os nós pela extensão da tarde,
Na fertilidade da figueira,
Na amplidão do salgueiro,
Nas savanas do antílope fugaz.


Mazisi Kunene

Tradução Adriano Moraes Migliavacca - tradução foi feita a partir do texto em inglês, que, por sua vez, é uma tradução do original zulu feita pelo próprio autor (Kunene trabalhava muito se traduzindo: frequentemente escrevia seus poemas em zulu e os traduzia para o inglês, publicando as duas versões).
Fonte: Estadão de São Paulo.

O canto de um bardo


















Sem sabor
Mastigo o meu intimo
Nestes dias escuros

Sem escolhas
Como um pobre arrimo
Para fora dos muros

Dias de mau humor
Transpiram nos passos apressados
Pelas calçadas
Dias de temor
Nos faróis cansados
Pela insegurança.

A noite chega
Em cápsulas receitadas
Por mãos descrentes
A alma cega alimenta-se
Em prateleiras abandonadas
Com livros doentes.

A criatividade
Segue o manual
De instrução
A objetividade
É animal
E sem noção

Solitários,
Altistas
E urbanos
Obituários
De artistas
Fazem-te humano

Por lágrimas
Exprimidas como espinhos
Num rosto triste
E amargo
Por páginas
Como moinhos
Que resistem
Como um bardo.


Henrique Rodrigues Soares – Pra Fora/Por Dentro

THE UNENDING GIFT













Um pintor nos prometeu um quadro.
Agora, em New England, sei que morreu. Senti,
como outras vezes, a tristeza de
compreender que somos como um sonho.
Pensei no homem e no quadro perdidos.
(Só os deuses podem prometer, porque são imortais.)
Pensei num lugar prefixado que a tela não ocupará.
Pensei depois: se estivesse aí, seria com o tempo
uma coisa a mais, uma das vaidades ou
hábitos da casa; agora é ilimitada,
incessante, capaz de qualquer forma e
qualquer cor e a ninguém vinculada.
Existe de algum modo. Viverá e crescerá como
uma música e estará comigo até o fim.
Obrigado, Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, porque na promessa há algo imortal.)


Em español

Un pintor nos prometió un cuadro.
Ahora, en New England, se que ha muerto. Sentí
como otras veces, la tristeza y la sorpresa
de comprender que somos como un sueño.
Pensé en el hombre y en el cuadro perdidos.
(Sólo los dioses pueden prometer, porque son inmortales).
Pensé en el lugar prefijado que la tela no ocupará.
Pensé después: si estuviera ahí, sería con el
tiempo esa cosa más, una cosa, una de las
vanidades o hábitos de mi casa; ahora es
ilimitada, incesante, capaz de cualquier
forma y cualquier color y no atada a
ninguno.
Existe de algún modo. Vivirá y crecerá como una
música, y estará conmigo hasta el fin.
Gracias, Jorge Larco.
(También los hombres pueden prometer, porque
[ en la promesa hay algo inmortal).


Jorge Luís Borges - De Elogío de la Sombra, 1969 - Tradução de Carlos Nejar e Alfredo Jacques

O homem, a luta e a eternidade
















Adivinho nos planos da consciência
dois arcanjos lutando com esferas e pensamentos
mundo de planetas em fogo
vertigem
desequilíbrio de forças,
matéria em convulsão ardendo pra se definir.
Ó alma que não conhece todas as suas possibilidades,
o mundo ainda é pequeno pra te encher.
Abala as colunas da realidade,
desperta os ritmos que estão dormindo.
À guerra! Olha os arcanjos se esfacelando!

Um dia a morte devolverá meu corpo,
minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins
meus olhos verão a luz da perfeição
e não haverá mais tempo.


Murilo Mendes

Gargalhada















Quando me disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias...
Mas olhei-te bem nos olhos,
belos como o veludo das lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
quando a inexperiência dos Deuses
ainda não criara o mundo...

João Guimarães Rosa, em 'Magma'.

Apelo
















Porque
não vens agora, que te quero
E adias esta urgência?
Prometes-me o futuro e eu desespero
O futuro é o disfarce da impotência.

Hoje, aqui, já, neste momento,
Ou nunca mais.
A sombra do alento é o desalento
O desejo o limite dos mortais.

Miguel Torga

Diz Mal do Amor que o Feriu Inesperadamente














Era o dia em que o sol escurecia
Os raios por piedade ao seu Fator,
Quando eu me vi submisso ao vivo ardor
De teu formoso olhar que me prendia.

Defender-me do golpe eu não queria;
Desabrigado achou-me então Amor;
Por isso acrescentou-se a minha dor
À dor universal que assaz crescia.

Achou-me Amor de todo desarmado,
Pelos olhos, ao peito aberta a estrada,
Olhos que se fizeram mar de pranto.

Porém a sua ação não o honra tanto:
Ferir-me, sendo inerme o meu estado,
Não te visar quando eras tão armada.


em italiano

Era il giorno ch’al sol si scoloraro
per la pietà del suo factore i rai,
quando i’ fui preso, et non me ne guardai,
ché i be’ vostr’occhi, donna, mi legaro.

Tempo non mi parea da far riparo
contra colpi d’Amor: però m’andai
secur, senza sospetto; onde i miei guai
nel commune dolor s’incominciaro.

Trovommi Amor del tutto disarmato
et aperta la via per gli occhi al core,
che di lagrime son fatti uscio et varco:

però al mio parer non li fu honore
ferir me de saetta in quello stato,
a voi armata non mostrar pur l’arco.


Francesco Petrarca

PETRARCA, Francesco. Diz mal do amor que o feriu inesperadamente / Fala dos efeitos contrários do amor. Tradução de Jamil Almansur Haddad. In: JACKSON, W. M., INC. (Eds.). Tesouro da juventude: livro da poesia. São Paulo, SP: Gráfica Editora Brasileira Ltda., 1955. Vol. VI, p. 316.

Horizontes
















Pai não adianta as botas
Se tiraste minhas pernas
Num mundo de cotas
Transformo-me em percentual

Meus sonhos estão em compotas
Guardados no fundo do universo
Minhas palavras amostras
De meu cérebro convencional

Garantias em mãos agiotas
Que tiram seu futuro lucro
Perdendo ou ganhando nas apostas
Que fingem está fazendo

E nessa vida caçando propostas
Para construir um futuro
Sem perguntas e respostas
Como uma idosa cosendo

Velhas cobranças nas portas
Para o novo que vai nascendo
O novo trigo barato se exporta
Enquanto nossos campos tristes morrendo.


Henrique Rodrigues Soares – Pra Fora/Por Dentro

Gaia Ciência



















Gosto de me iludir
pensando
que hoje amo
melhor que ontem amei.

Assim desculpo o jovem afoito
que, em mim, me antecedeu
e, generoso, encho de esperanças
o velho sábio
que amará melhor que eu.



Affonso Romano de Sant'Anna

Intermédio


















Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
não viram enterrar os mortos
nem a feira de cinza de quem chora pela madrugada
nem o coração que treme encurralado como um cavalo-marinho.

Aqueles meus olhos de mil novecentos e dez
viram a parede branca onde mijavam as meninas,
o focinho do touro, a seta venenosa
e uma lua incompreensível que iluminava pelos cantos
os pedaços de limão seco sob o negro duro das garrafas.

Aqueles meus olhos no pescoço da égua,
no seio trespassado de Santa Rosa adormecida,
nos telhados do amor com gemidos e frescas mãos,
em um jardim onde os gatos comiam as rãs.

Desvão onde a velha poeira congrega estátuas e musgos.
Caixas que guardam silêncios de caranguejos devorados.
No lugar onde o sonho tropeçava com sua realidade.
Ali meus pequenos olhos.

Não me perguntem nada. Eu vi que as coisas
quando buscam seu curso encontram seu vazio.
Há uma dor de ocos pelo ar sem ninguém
e nos meus olhos criaturas vestidas. Sem nudez!


Federico Garcia Lorca

Consciência Cósmica














Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...

Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
e deveria rir, se me retasse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...


Guimarães Rosa - em 'Magma'.

Fundação Mítica de Buenos Aires















E foi por este rio de soneira e de barro
que as proas arribaram para fundar-me a pátria?
Iriam aos vaivéns os barquinhos pintados
por entre os aguapés da correnteza arisca.

Pensando bem a coisa, vamos supor que o rio
era azulado então como oriundo do céu
com sua estrelinha rubra para marcar o sítio
em que jejuou Juan Díaz e os índios comeram.

O certo é que mil homens e outros mil arribaram
por um mar que de largo tinha umas cinco luas
ainda de sereias e endríagos povoado
e pedras imantadas que enlouquecem a bússola.

Fincaram alguns ranchos trêmulos pela costa,
dormiram assustados. Dizem que no Riachuelo,
mas estes são embustes que forjaram na Boca.
Um quarteirão inteiro e em meu bairro: Palermo.

Um quarteirão inteiro mas no meio do campo
exposto às alvoradas e chuvas e suestadas.
A quadra similar que persiste em meu bairro:
Guatemala, Serrano, Paraguay e Gurruchaga.

Um armazém rosado como as costas de um naipe
brilhou e lá no fundo conversaram um truco;
o armazém cor-de-rosa floresceu num compadre,
dono da esquina agora, e ressentido e duro.

Já o primeiro realejo salvava os horizontes
com seu porte queixoso, sua habanera e seu gringo.
Por certo o barracão já ostentava YRIGOYEN,
algum piano mandava tangos de Saborido.

Uma tabacaria incensou como rosa
o deserto. Já a tarde desmoronara em ontens,
e os homens compartiram um passado ilusório.
Só faltou uma coisa: o passeio defronte.

Para mim só na lenda começou Buenos Aires:
entendo-a tão eterna como a água e como o ar.



em espanhol


FUNDACIÓN MÍTICA DE BUENOS AIRES

Y fue por este río de sueñera y de barro
que las proas vinieon a fundarme una patria?
Irían a los tumbos los barquitos pintados
entre los camalotes de la corriente zaina.

Pensando bien la cosa, supondremos que el río
era azulejo entonces como oriundo del cielo
con su estrellitaroja para marcar el sitio
en que ayunó Juan Díaz y los indios comieron.

Lo cierto es que mil hombres y otros mil arribaron
por un mar que tenía cinco lunas de anchura
y aún estaba poblado de sirenas y endriagos
y de pedras imanes que enloquecen la brújula.

Prendieron unos ranchos trémulos en la costa,
durmieron extrañados. Dicen que en el Riachuelo,
pero son embelecos fraguados en la Boca.
Fue una manzana entera y en bi barrio: en Palermo.

Una manzana entera pero en mità del campo
expuesta a las auroras y lluvias y suestadas.
La manzana pareja que persiste en mi barrio:
Guatemala, Serrano, Paraguay y Gurruchaga.

Un almacén rosado como revés de naipe
brilló y en la trastienda conversaron un truco;
el almacén rosado floreció en un compadre,
ya patrón de la esquina, ya resentido y duro.

El primer organito salvaba el horizonte
con su achacoso porte, su habanera y su gringo.
El corralón seguro ya opinaba YRIGOYEN,
algún piano mandaba tangos de Saborido.

Una cigarrería sahumó como una rosa
el desierto. La tarde se había ahondado en ayeres,
los hombres compartieron un pasado ilusorio.
Sólo faltó una cosa: la vereda de enfrente.

a mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires:
la juzgo tan eterna como el agua y como el aire.


Jorge Luís Borges - Tradução de José Jeronymo Rivera

O Infinito













Sempre cara me foi esta colina
Erma, e esta sebe, que de tanta parte
Do último horizonte, o olhar exclui.
Mas sentado a mirar, intermináveis
Espaços além dela, e sobre-humanos
Silêncios, e uma calma profundíssima
Eu crio em pensamentos, onde por pouco
Não treme o coração. E como o vento
Ouço fremir entre essas folhas, eu
O infinito silêncio àquela voz
Vou comparando, e vêm-me a eternidade
E as mortas estações, e esta, presente
E viva, e o seu ruído. Em meio a essa
Imensidão meu pensamento imerge
E é doce o naufragar-me nesse mar.


em italiano:

Sempre caro mi fu quest'ermo colle,
E questa siepe, che da tanta parte
Dell'ultimo orizzonte il guardo esclude.
Ma sedendo e mirando, interminati
Spazi di là da quella, e sovrumani
Silenzi, e profondissima quiete
Io nel pensier mi fingo; ove per poco
Il cor non si spaura. E come il vento
Odo stormir tra queste piante, io quello
Infinito silenzio a questa voce
Vo comparando: e mi sovvien l'eterno,
E le morte stagioni, e la presente
E viva, e il suon di lei. Cosi tra questa
Immensita s'annega il pensier mio:
E il naufragar m'è dolce in questo mare.



Giacomo Leopardi - tradução de Vinícius de Moraes

Esculturas vivas























Repare nas mães
Tendo ao colo filhos dormindo:

Pietás de carne e osso
Carregando destinos.

.

Adriane Garcia

Sangue Latino


















Jurei mentiras
E sigo sozinho
Assumo os pecados
Os ventos do norte
Não movem moinhos
E o que me resta
É só um gemido
Minha vida, meus mortos
Meus caminhos tortos
Meu sangue latino
Minh'alma cativa
Rompi tratados
Traí os ritos
Quebrei a lanca
Lancei no espaço
Um grito, um desabafo
E o que me importa
É não estar vencido
Minha vida, meus mortos
Meus caminhos tortos
Meu sangue latino
Minh'alma cativa


João Ricardo Carneiro Teixeira Pinto, Paulo Roberto Teixeira Da Cunha Mendonça - Interpretado por Ney Matogrosso no grupo Secos e Molhados.

Soneto XXVI























Senhor do meu amor, de quem, em vassalagem,
Uniu firme o teu mérito ao meu dever,
A ti envio este pedido por escrito,
Em testemunho do dever, não do meu talento;


Dever tão grande, cujo talento tão pobre quanto o meu
Parece destituído de palavras para expressá-lo,
Mas que espero que o teu bom conceito
Em teu âmago, todo despido, lhe trará;

Até que uma estrela que guie o meu gesto
Aponte-me graciosamente com a sua beleza,
E vista o meu amor maltrapilho,
Para mostrar-me merecedor de teu doce respeito.

Então, que eu ouse me gabar do amor que sinto;
Até lá, me guardarei para que não me desafies.



Sonnets

Lord of my love, to whom in vassalage
Thy merit hath my duty strongly knit;
To thee I send this written embassage
To witness duty, not to show my wit.

Duty so great, which wit so poor as mine
May make seem bare, in wanting words to show it;
But that I hope some good conceit of thine
In thy soul's thought (all naked) will bestow it:

Till whatsoever star that guides my moving,
Points on me graciously with fair aspect,
And puts apparel on my tattered loving,
To show me worthy of thy sweet respect,

Then may I dare to boast how I do love thee,
Till then, not show my head where thou mayst prove me.

William Shakespeare - Tradução de Thereza Christina Rocque da Motta

Corpo: anatomia do mito














Ferro e cálcio
amor e calma,
iodo e ódio,
chumbo e dor.

Da cartilagem
ao osso,
do menino
ao moço
foi-se fazendo
a anatomia
desse corpo
— difícil e vária —
pois resume
a anatomia
do mito
e da animália.

O corpo
é meu mito
predileto,
a palavra
que mais uso
e o objeto
mais completo.

Por isto,
domar o corpo,
é seus mitos dominar,
é circunscrever os mitos
onde os mitos
devem estar,
que no corpo é que se instalam
e se fazem alimentar.

Por isto,
que outros corpos
há que sempre conquistar,
pois que um mito
a outro mito
sempre ajuda
a decifrar.



Affonso Romano de Sant'Anna

Soneto II



















Leia a posteridade, ó pátrio Rio,
Em meus versos teu nome celebrado,
Por que vejas uma hora despertado
O sono vil do esquecimento frio:

Não vês nas tuas margens o sombrio,
Fresco assento de um álamo copado;
Não vês ninfa cantar, pastar o gado
Na tarde clara do calmoso estio.

Turvo banhando as pálidas areias
Nas porções do riquíssimo tesouro
O vasto campo da ambição recreias.

Que de seus raios o planeta louro
Enriquecendo o influxo em tuas veias,
Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.


Cláudio Manoel da Costa

Saudades













Nas horas mortas da noite
Como é doce o meditar
Quando as estrelas cintilam
Nas ondas quietas do mar;
Quando a lua majestosa
Surgindo linda e formosa,
Como donzela vaidosa
Nas águas se vai mirar!

Nessas horas de silêncio,
De tristezas e de amor,
Eu gosto de ouvir ao longe,
Cheio de mágoa e de dor,
O sino do campanário
Que fala tão solitário
Com esse som mortuário
Que nos enche de pavor.

Então — proscrito e sozinho —
Eu solto aos ecos da serra
Suspiros dessa saudade
Que no meu peito se encerra.
Esses prantos de amargores
São prantos cheios de dores:
— Saudades — dos meus amores,
— Saudades — da minha terra !


Casimiro de Abreu

Canto IV
























Meus olhos vão seguindo incendiados
a chama da leveza nesta dança,
que mostra velho sonho acalentado
de ver a bailarina que me alcança

os sentidos em febre, inebriados,
cativos do delírio e dessa trança.
É sonho, eu sei. E chega enevoado
na mantilha macia da lembrança:

o palco antigo, as luzes da ribalta,
renascença da graça do seu corpo,
balé de sedução, mar que me falta

para o mergulho calmo de amante,
que se sabe maduro de esperar
essa viva paixão e seu levante.


Aníbal Beça

Poema dialético



















I
Todas as coisas ainda se encontram em esboço
Tudo vive em transformação
Mas o universo marcha
Para a arquitetura perfeita.

Retiremos das árvores profanas
A vasta lira antiga.
Sua secreta música
Pertence ao ouvido e ao coração de todos.
Cada novo poeta que nasce
Acrescenta-lhe uma corda.

II
Uma vida iniciada há mil anos atrás
Pode ter seu complemento e plenitude
Numa outra vida que floresce agora.

Nada poderá se interromper
Sem quebrar a unidade.

Um germe foi criado no princípio
Para que se desdobre em plenos múltiplos.
Nossos suspiros, nossos anseios, nossas dores
São gravados no campo do infinito
Pelo espírito sereníssimo que preside às gerações.

III
A muitos só lhes resta o inferno.
Que lhes coube na monstruosa partilha da vida
Senão um desespero sem nobreza, e a peste da alma?
Nunca ouviram a música nascer do farfalhar das árvores,
Nem assistiram à contínua anunciação
E ao contínuo parto das belas formas.
Nunca puderam ver a noite chegar sem elementos de terror.
Caminham conduzindo o castigo e a sombra de seus atos.
Comeram o pó e beberam o próprio suor.
Não se banharam no regato livre...

Entretanto, a transfiguração precede a morte.
Cada um deve realiza-la na sua carne e no seu espírito
Para que a alegria seja completa e definitiva.

IV
É necessário conhecer seu próprio abismo
E polir incessantemente o candelabro que o esclarece.

Tudo no universo marcha, e marcha para esperar:
Nossa existência é uma vasta expectação
Onde se tocam o princípio e o fim.
A terra terá que ser retalhada entre todos
E restituída um dia à sua antiga harmonia.
Tudo marcha para a arquitetura perfeita.
A aurora é coletiva.



Murilo Mendes

Contato

















Não contratei com a vida.
O que ela me liga
é uma conquista de viver,
é uma fúria aprendida,
mas que gosta de ventar em mim.

Nunca segui cláusulas,
normas de existir.
Deixo que outros as cumpram
ou descumpram,
em artigo de morte ou vício.
Deixo que os contratantes
tentem apanhar a vida
em desídia;
ou busquem leva-la
aos ombros, na garupa
dos próprios escombros.

Não contratei com a vida.
Se ela me deu temores, desespero,
não me queixo, nem combato.
Não uso a legítima defesa
para impedir seu parto;
que ela nasça em mim,
cresça e se desfaça

Culpa não tenho
deste amor em desgraça,
deste amor sem casamento,
padrinhos, festas oficiais
e oferendas.

Não contratei;
o estado de graça
é castigá-la
com merecimento,
desamarrá-la das horas,
matá-la em nós.
E continuar vivendo.


Carlos Nejar

Cai a tarde sobre meus ombros


Cai a tarde
sobre meus ombros
não apenas
sobre os Dois Irmãos.

Desaba mais um dia.
Para muitos — de esperança.
Para outros — de humilhação.

Sobre mim
desaba a história.
Em algum lugar
disseram que há luz
mas o que vejo
— é a escuridão.



Affonso Romano de Sant'Anna

O Tempo

















A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado...
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas...
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo...
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.


Mário Quintana

Origem
























Vestir a camisa
de um poeta negro
- espetar seu coração
com uma fina
ponta de faca
- dessas antigas,
marca Curvelo,
em aço sem corte,
feito para a morte

- E acomodar
no exíguo espaço
de uma bainha
sua dor-senzala.
Papai
levava tempo
para redigir uma carta

Já mamãe Sebastiana de José Teodoro
teve a emoção de assinar seu
nome completo
já quase aos setenta anos


Adão Ventura

Crer










Creio em mim. Creio em ti. Deus, onde mora?
Na vontade de crer que me consente
humano e ardente.
No meu repouso em ti, que me alimenta.
No que vejo e recebo, nesta vara
florida num deserto, em meu maná
de agora e de jamais. Saber-me hoje
tão digno do tempo que me mata
é arder-me em Deus, e este saber me basta.


Walmir Ayala

Canto III
























O dorso que se curva elegante
desenha na memória a leve dança
da bailarina grácil, celebrante
de rito sedutor, que me balança

toda vez que me vejo tão distante,
torcendo meus desejos na lembrança
dos momentos vividos, no constante
aprendizado vasto da mudança.

Posto que a vida corre em curtas curvas,
transitória paisagem, vário atalho
que vai modificando linhas turvas.

Mutante claridade me agasalha:
no casulo do gozo de sussurros
sei-me bicho saído dessa malha.


Aníbal Beça

O Tempo seca o Amor

O tempo seca a beleza, seca o amor, seca as palavras. Deixa tudo solto, leve, desunido para sempre como as areias nas águas. O tempo seca a ...

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