Motivos














Por que a poeira da estrada já se faz pálida
Há um rumor clamando urgências.

Por que os olhos da noite já se tornaram glaucos
Há uma esteira iluminando ontens.

Por que as nuvens galopam desenhos do instinto
Há uma foice ceifando minutos.

Por que o presto está prestes a partir na aventura
Há grãos debulhando agoras.

Por que o desejo alimenta a lentidão
Há um pandeiro no ritmo de frevo.

Por que a fala já é rouca no eco das sílabas
Há um discurso rotulando verbos.

Por que a carícia se assola no solo da pele
Há uma partitura sem sons no silêncio da gruta.

Motivos existem circundando mandalas
Mandá-las soar as sete notas sem as pausas
Alimentar os ventos aventureiros
Cantar a canção de embalo da sesta
Preservar a sedução no horário do corpo
Soprar nuvens no céu dos neurônios
Bem assim o pedido para alongar a música.


Aníbal Beça

Pela liberdade viva

















Meu amor

no teu peito de coragem
feito de pedras e cardos
há um país de viagem
e vinhos de cada cor
verdes maduros bastardos.

Há uma pedra de cal
em cada olhar que respira
há uma dor que já dura
desde que dura a mentira
há um muro levantado
numa seara madura.

Verde mar
verde limão
são os teus olhos de medo
o vento é este segredo
que escreve em cada manhã
o nome dela na erva
numa folha numa pedra
nos bagos de uma romã.

Acendo-te uma fogueira
nas tuas mãos acordadas
dou-te flores de laranjeira
dou-te ruas dou-te estradas
dou-te palavras secretas
dou-te coragem e setas
dou-te os meus dedos crispados
ponho cravos amarelos
à volta dos teus cabelos
dou-te o meu sangue vermelho
e o meu canto proibido

Dou-te o meu nome
raíz
há muito tempo arrancada
dou-te esta calma guardada
nos homens do meu país
dou-te a fome
do meu canto
dou-te os meus braços em cruz
e as mãos feitas num crivo
dou-te os meus pulsos abertos

mas é por outra que vivo.

Joaquim Pessoa

Eu te Amo




















Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás se fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir


Chico Buarque de Holanda

Inquisição















Ao poeta que nos nega

Enquanto a inquisição
Interroga
a minha existência
e nega o negrume
do meu corpo-letra
na semântica
da minha escrita,
prossigo.

Assunto não mais
o assunto
dessas vagas e dissentidas
falas.

Prossigo e persigo
outras falas,
aquelas ainda úmidas,
vozes afogadas,
da viagem negreira.

E apesar
de minha fala hoje
desnudar-se no cálido
e esperançoso sol
de terras brasis, onde nasci,
o gesto de meu corpo-escrita
Levanta em suas lembranças
Esmaecidas imagens
de um útero primeiro.
Por isso prossigo.
Persigo acalentando
nessa escrevivência
não a efígie de brancos brasões,
sim o secular senso de invisíveis
e negros queloides, selo originário,
de um perdido
e sempre reinventado clã.

Conceição Evaristo













debaixo
da pia
um par
de mágoas
envelhecem

ratos visitam
a caligrafia das estradas
grafadas na lamúria das solas

no
ato
da
fome

como se fossem restos
de estômagos nos pratos
roem cada parte sentimental do couro

devoram
o tempo
e os endereços
sem o esteio do retorno
da classe social
das
ordinárias
botas
tristes


Carlos Orfeu

Adultos


















Cai a chuva
Torrencialmente
E quero seguir...

Há tanta coisa
Que me submeto,
Tanta coisa
Que me prende.

Correr na chuva!
É coisa de criança...

Cai a chuva
Libertando a terra
E não posso prosseguir...

Há tanta coisa
Que me suja
Tanta coisa
Que não me escusa.

Brincar na chuva!
É coisa de criança...


Henrique Rodrigues Soares – Pra Fora/ Por Dentro

Labirinto

















Não haverá uma porta. Já estás dentro,
Mas o alcácer abarca o universo
E não tem nem anverso nem reverso
Nem muro externo nem secreto centro.

Não penses que o rigor do teu caminho
Que fatalmente se bifurca em outro,
Que fatalmente se bifurca em outro,
Terá fim. É de ferro o teu destino

Como o juiz. Não creias na investida
Do touro que é um homem cuja estranha
Forma plural dá horror a essa maranha

De interminável pedra entretecida.
Não virá. Nada esperes. Nem te espera
No escuro do crepúsculo uma fera.

.

LABERINTO

No habrá nunca una puerta. Estás adentro
Y el alcázar abarca el universo
Y no tiene ni anverso ni reverso
Ni externo muro ni secreto centro.

No esperes que el rigor de tu camino
Que tercamente se bifurca en otro,
Que tercamente se bifurca en otro,
Tendrá fin. Es de hierro tu destino

Como tu juez. No aguardes la embestida
Del toro que es un hombre y cuya extraña
Forma plural da horror a la maraña

De interminable piedra entretejida.
No existe. Nada esperes. Ni siquiera
En el negro crepúsculo la fiera.


Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

O Tempo seca o Amor

O tempo seca a beleza, seca o amor, seca as palavras. Deixa tudo solto, leve, desunido para sempre como as areias nas águas. O tempo seca a ...

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