Cantos das Américas






















I
Oh, América! Minha América!
De uma desigualdade numérica
De sonhos e diferenças infindas
Oh, América! Minha América!
Das hostes homéricas
Com seus bastardos indígenas.


Da cabeça ianque tão bélica
Cintura caribenha, afrodisíaca, lotérica
Cordilheira, eldorado, andino, platino
Criollo, mestiço, pobre, latino


Das peles multicores
Dos paladares e sabores
Puritano protestante
Esotérica, católica de dores
Que se veste de militante
Que dança ao toque dos tambores.


Vestido pelas florestas densas
De um verde dolarizado
As razões, sincretismo e crenças
Do americano globalizado.


II
América! Minha América!
Pueblo, personnes, people, povo
Todos americanos
Big steak, arriba, liberdade, aur revoir
Uma América para todos americanos
E todas as nossas origens, peles e sotaques
Astecas, Maias, Incas, Apaches
Tupi, Guarani, Sioux e seus tacapes.


América de estreladas noites
Correntes em filas, açoites
Humanos e desumanos nos parques
Navios navegam no delírio
Do Atlântico tão americano
Africano, meu ritmo afro americano.


Cadê os ameríndios?
Cadê os nativos americanos?
Na América dos americanos
Asiáticos, europeus e africanos
Embarcam e desembarcam
Procurando algo mais
Procurando paz
E de marcas capitalistas nos vestimos
E sobre números nos marcamos.



III
Batman, Superman, Capitão América
Zorro, Chapolin, Lampião
Toussaint, George Washington, Fidel Castro
Martin, Bolívar, Che Guevara e Lamarca.
Quem vai nos libertar das correntes?
Quem vai nos guiar para frente?
A “terra de bravos”, ou da “ordem e progresso”


Nossa América! Nossa América!
Com seus ditadores democratas
Com sua democracia escravocrata
Com seus bandidos de sangue nobre
Cada idioma com seus pobres.


Mas todos somos americanos
Sonhadores, livres e sem memórias.
Pedintes ao FMI por pedigree e esmolas
Nossos gráficos alcançaram
O que nossas armas e omissão
Trabalharam para chegar.


Somos todos americanos
Com toda nossa indigência e magreza
Com toda nossa versatilidade e esperteza
Com toda nossa solidariedade e preconceitos
Com toda nossa inferioridade e despeito.




Henrique Rodrigues Soares – Canibais Urbanos

ás


desordem violenta
todos os movimentos
estáticos às 6 da tarde

antenas de bombril do rádio
captam o exaspero do sangue
o magma dos gritos

tímpanos se desesperam
na microfonia do caos
não adianta ranger dentes

nos rosários e nem acender
labaredas de santos nos recantos
caninos das imundas calçadas

a desordem cavalga
na dor que não se deita
com aspirina nem droga nenhuma

se contorce atrás da jaula
cinética do olho e não
foge pelas glândulas


Carlos Orfeu

Assim nasce um conservador


De todos os invernos
De todas as noites sangrentas
De todos os infernos
De todos os céus desterrados de perdão.

De toda obediência burra
Ao oficial, burocrata,
À coroa, ao cetro,
Ao papa, ao cura.

De todo medo
“Agora não, ainda é cedo”,
de todo gesto invertido para dentro,
de toda palavra que morre na boca.

Do obscurantismo, de todo preconceito,
de tudo que te cega, de tudo que te cala,
de tudo que lhe tolhe, de tudo que recolhes,
de tudo que abdicas, de tudo que te falta.

Um beijo o assusta,
um abraço o enfurece,
a dúvida o enlouquece,
a razão se esvanece no vácuo.

Germina, assim, uma impotência tão grande,
que deforma as feições e torna tenso o corpo,
o dedo em riste, a veia que salta no pescoço,
a boca transformada em latrina.

Assim nasce o conservador.
Ele teme tudo que é novo e se move.
É um ser frágil, arrogante, assustado…
e violento.


Mauro Iasi

Branco























No meio do Branco
O Verso
No meio do Verso
Uma Janela

Dentro da Janela
O Rio

Dentro do Rio
O Silêncio

Atravessando Silêncio
O Deserto

Atravessando o Deserto
O Mar

No fundo do Mar
O Céu

No fundo do Céu...
O Branco


Wanda Monteiro

agora ar é ar e coisa é coisa:traço

nenhum da terra celestial seduz
nossos olhos sem ênfase onde luz

a verdade magnífica do espaço.

Montanhas são montanhas;céus são céus -
e uma tal liberdade nos aquece
que é como se o universo uno,sem véus,

total,de nós(somente nós)viesse

- sim;como se, despertas do torpor
do verão,nossas almas mergulhassem
no branco sono onde se irá depor
toda a curiosidade deste mundo
(com júbilo de amor)imortal e a coragem

de receber do tempo o sonho mais profundo



e.e. cummings - tradução: Augusto de Campos

rosto de barro


mãos invisíveis tramam
num áspero ritmo
o duro rosto de barro

em desacordo com o espelho
o rosto se reconhece e se dissolve
outras faces nascem

atravessando o mudo reflexo
uma imagem cansada parte

e sobre a desalmada terra
incidem mil disfarces em pedaços


Carlos Orfeu

O Barulho do Mar















Na tarde de domingo, volto ao cemitério velho de Maceió
onde os meus mortos jamais terminam de morrer
de suas mortes tuberculosas e cancerosas
que atravessam a maresia e as constelações
om suas tosses e gemidos e imprecações
e escarros escuros
e em silêncio os intimo a voltar a esta vida
em que desde a infância eles viviam lentamente
com a amargura dos dias longos colada às existências monótonas
e o medo de morrer dos que assistem ao cair da tarde
quando, após a chuva, as tanajuras se espalham
no chão maternal de Alagoas e não podem mais voar.
Digo aos meus mortos: Levantai-vos, voltai a este dia inacabado
que precisa de vós, de vossa tosse persistente e de vossos gestos enfadados
e de vossos passos nas ruas tortas de Maceió. Retornai aos sonhos insípidos
e às janelas abertas sobre o mormaço.
Na tarde de domingo, entre os mausoléus
que parecem suspensos pelo vento
no ar azul
o silêncio dos mortos me diz que eles não voltarão.
Não adianta chamá-los. No lugar em que estão, não há retorno.
Apenas nomes em lápides. Apenas nomes. E o barulho do mar.


Ledo Ivo

Hay un niño en la calle



























A esta hora, exactamente,
hay un niño en la calle.

Le digo amor, me digo, recuerdo que yo andaba
con las primeras luces de mi sangre, vendiendo
un oscura vergüenza, la historia, el tiempo,
diarios,
porque es cuando recuerdo también las presidencias,
urgentes abogados, conservadores, asco,
cuando subo a la vida juntando la inocencia,
mi niñez triturada por escasos centavos,
por la cantidad mínima de pagar la estadía
como un vagón de carga
y saber que a esta hora mi madre está esperando,
quiero decir, la madre del niño innumerable
que sale y nos pregunta con su rostro de madre:
qué han hecho de la vida,
dónde pondré la sangre,
qué haré con mi semilla si hay un niño en la calle.

Es honra de los hombres proteger lo que crece,
cuidar que no haya infancia dispersa por las calles,
evitar que naufrague su corazón de barco,
su increíble aventura de pan y chocolate,
transitar sus países de bandidos y tesoros
poniéndole una estrella en el sitio del hambre,
de otro modo es inútil ensayar en la tierra
la alegría y el canto,
de otro modo es absurdo
porque de nada vale si hay un niño en la calle.

Dónde andarán los niños que venian conmigo
ganándose la vida por los cuatro costados,
porque en este camino de lo hostíl ferozmente

cayó el Toto de frente con su poquita sangre,
con sus ropas de fé, su dolor a pedazos
y ahora necesito saber cuáles sonríen
mi canción necesita saber si se han salvado,
porque sino es inutil mi juventud de música
y ha de dolerme mucho la primavera este año.

Importan dos maneras de concebir el mundo,
Una, salvarse solo,
arrojar ciegamente los demás de la balsa
y la otra,
un destino de salvarse con todos,
comprometer la vida hasta el último náufrago,
no dormir esta noche si hay un niño en la calle.

Exactamente ahora, si llueve en las ciudades,
si desciende la niebla como un sapo del aire
y el viento no es ninguna canción en las ventanas,
no debe andar el mundo con el amor descalzo
enarbolando un diario como un ala en la mano,
trepándose a los trenes, canjeándonos la risa,
golpeándonos el pecho con un ala cansada,
no debe andar la vida, recién nacida, a precio,
la niñez, arriesgada a una estrecha ganancia,
porque entonces las manos son dos fardos inútiles
y el corazón, apenas una mala palabra.

Cuando uno anda en los pueblos del país
o va en trenes por su geografía de silencio,
la patria
sale a mirar al hombre con los niños desnudos
y a preguntar qué fecha corresponde a su hambre
que historia les concierne, qué lugar en el mapa,
porque uno Norte adentro y Sur adentro encuentra



la espalda escandalosa de las grandes ciudades
nutriéndose de trigo, vides, cañaverales
donde el azúcar sube como un junco en el aire,
uno encuentra la gente, los jornales escasos,
una sorda tarea de madres con horarios
y padres silenciosos molidos en la fábricas,
hay días que uno andando de madrugada encuentra
la intemperie dormida con un niño en los brazos.

Y uno recuerda nombres, anécdotas, señores
que en París han bebido
por la antigua belleza de Dios, sobre la balsa
en donde han sorprendido la soledad de frente
y la índole triste del hombre solitario,
en tanto, sus señoras, tienen angustia y cambian
de amantes esta noche, de médico esta tarde,
porque el tedio que llevan ya no cabe en el mundo
y ellos son los accionistas de los niños descalzos.

Ellos han olvidado
que hay un niño en la calle,
que hay millones de niños
que viven en la calle
y multitud de niños
que crecen en la calle.

A esta hora, exactamente,
hay un niño creciendo.

Yo lo veo apretando su corazón pequeño,
mirándonos a todos con sus ojos de fábula,
viene, sube hacia el hombre acumulando cosas,
un relámpago trunco le cruza la mirada,
porque nadie proteje esa vida que crece
y el amor se ha perdido
como un niño en la calle...







Há uma criança na rua

Neste momento, exatamente,
não é uma criança na rua.

Eu digo amor, quero dizer, eu me lembro que eu estava
com a primeira luz do meu sangue, vendendo
uma vergonha escuro, história, tempo,
dia,
porque é quando eu me lembro também presidências,
advogados urgentes, conservador, desgosto,
quando eu ir para a vida recolhendo inocência,
minha infância esmagado por um alguns centavos,
o montante mínimo a pagar a estadia
como um vagão de carga
e saber que neste momento a minha mãe está esperando,
Quer dizer, a mãe de inúmeras crianças
a sair e pede sua mãe cara:
o que eles têm feito na vida,
onde colocar sangue,
o que vou fazer com a minha semente se não é . uma criança na rua que

é a honra dos homens protegem o que cresce,
tomar cuidado para que não se dispersa crianças pelas ruas,
prevent destruiu seu barco coração,
sua incrível aventura de pão e chocolate,
trânsito seus países de bandidos e tesouros
colocando uma estrela no site de fome,
caso contrário, é inúteis para tentar na terra
alegria e música,
caso contrário, é um absurdo
, porque isso é inútil se não é uma criança na rua.

Onde andará as crianças que vieram comigo
ganhar a vida em todos os quatro lados,
porque, desta forma, hostil ferozmente

ela caiu Toto frente com o seu sangue Poquita,
sua roupa fé, sua dor distante
e agora eu preciso para saber o que eles sorrir
minha música precisa para saber se você tem guardado,
porque é inútil a minha música juventude
e estava doendo muito primavera deste ano.

importan duas maneiras de conceber o mundo,
um, salvar a si mesmo,
cegamente jogar o resto da jangada
eo outro,
um destino para salvar a todos,
comprometer a vida até o último naufrágio,
não dormir esta noite se não é um criança na rua.

Só agora, se chover nas cidades,
se você descer a neblina como um ar sapo
eo vento é nenhuma canção nas janelas,
você não deve andar o mundo com os pés descalços amor
brandindo um jornal como uma asa na lado,
subindo para trens, canjeándonos riso,
batendo -nos o peito com uma asa cansado,
você não deve andar vida, recém-nascido, preço,
infância arriscado para um ganho estreita,
porque então as mãos são dois pacotes inúteis
e coração, apenas uma palavra ruim.

Quando você anda nas aldeias do país
ou ir em trens por geografia de silêncio,
o país
vai olhar para o homem com crianças nuas
e pedir que data a sua fome
com a história estão em causa, o lugar no mapa,
porque um norte interior e do Sul em é



a parte de trás escandalosa das grandes cidades
nutridas trigo, vinhas, campos de cana de açúcar
onde o açúcar sobe como um junco no ar,
encontra-se as pessoas, salários pobres,
um surdo tarefa de mães com horários
e pais silenciosas moídas nas fábricas,
há dias em que você anda na madrugada localizado
ao ar livre dormir com uma criança nos braços.

e você se lembrar de nomes, anedotas, senhores
em Paris beberam
pela antiga beleza de Deus na balsa
onde surpreso diante da solidão
e da natureza triste do homem solitário,
enquanto, seus amantes, têm ansiedade e mudanças de
amantes esta noite médica, esta tarde,
porque o tédio que carregam já não se encaixa na mundo
e eles são os acionistas de crianças descalças.

esqueceram-se
de que não é uma criança na rua,
há milhões de crianças
que vivem na rua
e muitas crianças
que crescem acima na rua.

neste momento, exatamente,
não é um miúdo que cresce acima .

Eu o vejo apertando seu pequeno coração,
assistindo -nos todos com o seu olhos fábula,
ele vem até o homem acumulando coisas,
relâmpago truncar através de seus olhos,
porque ninguém protege a vida que cresce
e amor se perdeu
como uma criança na rua ...




Armando Tejada Gómez

Dissidência ou a arte de dissidiar


















Há hora de somar
E hora de dividir.
Há tempo de esperar
E tempo de decidir.
Tempos de resistir.
Tempos de explodir.
Tempo de criar asas, romper as cascas
Porque é tempo de partir.
Partir partido,
Parir futuros,
Partilhar amanheceres
Há tanto tempo esquecidos.
Lá no passado tínhamos um futuro
Lá no futuro tem um presente
Pronto pra nascer
Só esperando você se decidir.
Porque são tempos de decidir,
Dissidiar, dissuadir,
Tempos de dizer
Que não são tempos de esperar
Tempos de dizer:
Não mais em nosso nome!
Se não pode se vestir com nossos sonhos
Não fale em nosso nome.
Não mais construir casas
Para que os ricos morem.
Não mais fazer o pão
Que o explorador come.
Não mais em nosso nome!
Não mais nosso suor, o teu descanso.
Não mais nosso sangue, tua vida.
Não mais nossa miséria, tua riqueza.
Tempos de dizer
Que não são tempos de calar
Diante da injustiça e da mentira.
É tempo de lutar
É tempo de festa, tempo de cantar
As velhas canções e as que ainda vamos inventar.
Tempos de criar, tempos de escolher.
Tempos de plantar os tempos que iremos colher.
É tempo de dar nome aos bois,
De levantar a cabeça
Acima da boiada,
Porque é tempo de tudo ou nada.
É tempo de rebeldia.
São tempos de rebelião.
É tempo de dissidência.
Já é tempo dos corações pularem fora do peito
Em passeata, em multidão
Porque é tempo de dissidência
É tempo de revolução


Mauro Iasi

Conquista




















Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente. 



Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua! 



Miguel Torga, in 'Cântico do Homem'

Enquanto eu Ponderava em Silêncio






















1
Enquanto eu ponderava em silêncio,
Retornando sobre meus poemas, considerando, muito demorando-me
Um Fantasma ergueu-se diante de mim, de aspecto desconfiado,
Terrível em beleza, idade e poder,
O gênio de poetas de antigas terras,
Como se a mim direcionasse seus olhos feito chama,
Com dedo apontado para muitas canções imortais
E voz ameaçadora, O que cantas tu?, disse;
Não sabes que há senão um tema para bardos sempiternos?
E que esse é o tema da Guerra, a fortuna das batalhas,
A feitura de soldados perfeitos?


2
Que assim seja, pois, respondi,
Também eu, altivo Vulto, canto a guerra – e uma maior e mais longa do que qualquer outra,
Travada em meu livro com fortunas várias – com fuga, avanço e retirada – a Vitória trêmula e deferida,
(No entanto, creio, certa, ou quase o mesmo que certa, afinal,) – O campo o mundo;
Pois a vida e a morte – para o Corpo, e para a Alma eterna,
Vede! também venho, entoando o canto das batalhas,
Eu, sobretudo, promovo bravos soldados.




As I Ponder’d in Silence

1
As I ponder’d in silence,
Returning upon my poems, considering, lingering long,
A Phantom arose before me, with distrustful aspect,
Terrible in beauty, age, and power,
The genius of poets of old lands,
As to me directing like flame its eyes,
With finger pointing to many immortal songs,
And menacing voice, What singest thou? it said;
Know’st thou not, there is but one theme for ever-enduring bards?
And that is the theme of War, the fortune of battles,
The making of perfect soldiers?

2
Be it so, then I answer’d,
I too, haughty Shade, also sing war—and a longer and greater one than any,
Waged in my book with varying fortune—with flight, advance, and retreat—Victory deferr’d and wavering,
(Yet, methinks, certain, or as good as certain, at the last,)—The field the world;
For life and death—for the Body, and for the eternal Soul,
Lo! too am come, chanting the chant of battles,
I, above all, promote brave soldiers.



Walt Whitman

O Polvo
















Ai… um polvo!
Tentáculos na sala de estar.
Nada mais incômodo que
tentáculos pegajosos.
Este pedaço de vida
que voa pela janela
não é aquele onde eu dizia:
“Eu já resolvi isto”?
Jurei ser diferente.
Papai casou com mamãe,
perante a Igreja e a Lei.
Juraram ser felizes:
mentiram!
Nem Deus, nem os juizes
parecem se preocupar.
Eu não…
Reneguei altares,
cuspi nos papéis amarelados
dos livros de registros civil.
Comigo não…
Apaixonei-me
por olhos meigos,
por uma boca pequena
que guardava palavras doces
e beijos serenos.
Dormimos juntos
moramos juntos
juntos vivemos
comemos
saímos
amamos.
O dia
o café
o almoço
a escova de dentes
os hábitos
o hálito
os sábados
os mitos
os fatos
os filhos.
O ato falho
as falas
as facas
as falas feito facas
as feridas
Meus filhos me olham
como a dizer:
“Papai casou-se com mamãe.
nada jurou a ninguém,
nem a Deus, nem a Lei.
Não registrou seu casamento burguês
por isso pensa que sua infelicidade
é diferente”.
Tem um polvo na sala de estar!
Nada mais grudento que um polvo.
Seus tentáculos enormes e infinitos
crescem a cada dia.
Logo eu que detesto polvos.
Como, por diabos, apareceu este por aqui?
Como teria crescido tanto?
Isto eu penso
enquanto, calmamente,
alimento o polvo
como faço todos os dias.



Mauro Iasi -
livro MetAmorFases

Soneto a Vera


















Estavas sempre aqui, nesta paisagem.
E nela permaneces, neste assombro
do tempo que só é o que já fomos,
um céu parado sobre o mar do instante. 



Vives subitamente em despedida,
calma de sonhos, simples visitante
daquilo que te cerca e do que fica
imóvel no que é breve, pouco e humano. 


As regatas ao sol vêm da penumbra
onde abria as janelas. E de então,
vou ao campo de trevo, à tua espera. 


O que passa persiste no que tenho:
a roupa no estendal, o muro, os pombos,
tudo é eterno quando nós o vemos. 



Alberto da Costa e Silva, in 'A Roupa no Estendal, o Muro, as Pombas'

Quando




















Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta. 



Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei. 


Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.



Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Dia do Mar'

A CADA PASSO


A cada passo, marca ou pegada
caminhada árdua, luta nossa
levantar de madrugada
da cama pula, trabalha e estuda
jornada dupla e outras coisas tantas

A cada passo, pulso firme
cumpre o prazo, veia e sobressalto
cansaço bate a cada metro percorrido
até parecer de fato
que a gente tá esgotado

... que a ladeira é muito íngreme
mas a entrega nos define
e assim surge um gás
que nos faz capaz
de vencer qualquer aclive

A cada passo sacolejo o desânimo
Espetacular é o obstáculo
quando a gente ama
e se amontoa de uma força
que nos transporta pra vitória

A cada passo a sede mato
suplanto, raiz forte finco
pernas bem postadas, às suas marcas
fôlego novo, pedalo nas curvas da estrada
outro horizonte tão logo estará próximo

E feito esse esforço
ao lado dela, cessar um pouco
olhar pra nossa história construída
respirar do frescor que nos inspira
permear de amor a nossa trilha
e as paisagens acompanham a sinergia


Alan Salgueiro

Rosa de Outono






















No outono, em abril, nascem flores.
No outono, em abril, todos os anos.
Tu desabrochas, e como amo,
O teu perfume, como teu riso,
Enleia os dias com as tuas cores.
Enche meu paladar de sabores.


Nas nossas calientas diferenças
Vou até teu encontro e te amo.
Em suas apaixonadas interferências
Vejo a garra dos teus cuidados
O zelo espontâneo que demonstra
Sou mais do que feliz ao teu lado.


Minha doce pele morena
Que elogios tu merece?
Se na vida comigo contracenas
Se ao mesmo Deus fazemos preces.


Frutos recebi do que cultivamos
Juntos, e escrevemos páginas
Com letras ternas e amantes.
Encontramos e lapidamos
Juntos, no profundo da magna
Lindos e originais diamantes.




Henrique Rodrigues Soares – Canibais Urbanos

Bastava-nos Amar



















Bastava-nos amar. E não bastava
o mar. E o corpo? O corpo que se enleia?
O vento como um barco: a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia. 



Bastava-nos ficar. E não bastava
o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.


Respirar. Respirar. Até que o mar
pudesse ser amor em maré cheia.
E bastava. Bastava respirar 


a tua pele molhada de sereia.
Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia. 



Joaquim Pessoa, in 'Português Suave'

abril


não completo
ciclo de asas

na lâmina
de dois dígitos

sou bicho
que se des-

completa
em cada nova fenda

de abril e ex-
cede


Carlos Orfeu

Razões


Desde o princípio em que foi feito o mundo
Uma sentença existe, e que não muda:
Persiste o arraigado mais profundo
Que o amor é cego e que a saudade é muda.

Passam-se os tempos e evolui a vida.
Há inovações e toda lei se estuda;
Ninguém remove a instigação antiga
Que o amor é cego e que a saudade é muda.

...Talvez se ame a quem não deva amarmos...
E neste item com rigor me apego,
Vendo a razão por que o amor é cego.

E se sofrermos por silenciarmos
Do abandono a dor sobeja e aguda,
Eis a razão por que a saudade é muda.



Bernardina Vilar. - Do Livro: Meus Versos

NÃO VAI TER GOLPE


Tive que ser forte pra fugir do golpe
me esquivar pra esquerda pra evitar a queda
e driblar a espada e escuta escusa
e usar o escudo à lança pontiaguda

Tive que ser bravo pra estancar o sangue
sem anestesia arrancar o grampo
que tal como tora me feria a pele
a mira certeira do martelo soberano

Tive que ser ágil pra escapar das cordas
dos reacionários e dos cães raivosos
Tive que escutar um discurso de ódio
e temer a tônica da ameaça

Tive outra vez que ali tomar a praça
pra que a força fosse a do debate
pra que não houvesse outro ato covarde
como no nocaute de sessenta e quatro

Tive que sair do gancho e do direto
e fazer valer o Estado Democrático
e do que no voto ficou decidido
antes de haver contagem regressiva
e numa mordida me levarem à lona
tal qual Mike Tyson a Hollifield

Tive que contar com a presença da massa
pra então lutar contra posturas rasas
e correr na rua tal como Balboa
sob chuva forte, vento ou garoa
e me perfilar sobre as escadarias
defender as cores da democracia
do ponto mais alto do clamado pódio
só bradar a todos que não vai ter golpe


Alan Salgueiro

Organoléptica






















Foi difícil conviver com estas máximas
Quantas dores temperam estas lágrimas?
O que esperar no amanhã que não chega?
O que é o suor na camisa molhada?
O som do choro na voz embargada?


Que duras noites carrego nos meus olhos
Minhas roupas cansaram do mesmo caminho
Derrame sobre minhas feridas o teu óleo
Pobre rotina que virou teu esperado carinho


Depois que andaste um tempo comigo
Nunca mais quiseste ir embora
No teu sorriso aberto um abrigo
Consola as decepções que me namora


Coloque os paralelepípedos nas ruas
Pois meus sonhos não possuem freios
Realidade que cada um tem a sua
E todos sobrevivem por seus próprios meios


Teu cheiro, teu calor, tua textura,
Com passos miúdos chego longe
O contato intenso com tua ternura
Deixa-me não sei, não sei onde?



Henrique Rodrigues Soares – Canibais Urbanos


A Mão no Berço

"O Berço" (1872) Berthe Morisot



























Há um outro menino
que ainda não corre nos jardins
mas já tem o meu nome.

Ele também passará
muitas vezes a vau
o milagre e o mistério

e o sonho trocará
por febre e movimento,
embora possa, um dia,

sentado na calçada,
reter também nas mãos
a vida, pequenina,

fraca, incerta, fugaz,
erva tímida, finda
tão logo a toca e a vê,

hora, brisa, avezinha
a bicar o capim,
entre ramagem e vôo.

Ele também sofrerá
o frio de ser sozinho
e puxará sobre o corpo

até ao queixo o amor.
E sentirá na pele
o que o sangue lhe reza,

a forma de morrer,
sendo linguagem e beijo.
Por agora, ele apenas

respira: o meu menino
nada sabe do bibe,
da cesta de merenda,

nem dos barcos embriagados e outros versos que ficam,
adolescentes, nos passos que damos para dentro
de nós, de nossas veias, nem das mãos que retocam
o amor na memória
— a moça recostada, entre sorriso e pranto,
no corrimão, a descer a escada das manhãs,
a mulher,
com seu coque grisalho, a amparar-se no alísio
cheio de laranjas,
ele e ela,
e tudo o que canta
nesta forma de abraço que é um roçar de dedos.

Não sabe do entardecer, o meu menino. Sabe
do orvalho? Entende a cantilena das flores nos jarros e nos pastos?
Ou apenas espera que a vida o vista de lembranças e lágrimas
e do esplendor do sol após a chuva
e lhe diga ao ouvido todas as palavras da carne que o sonho não sacia,
mas que são asas e um bater de pulso que lembra a eternidade.


— Nada tenho a te dar. Empobrecido,
junto ao teu berço, peço ao inimigo
que te conceda o que me deu, o abrigo
do que em mim ninguém viu (ou viu somente

o que era sombra, búzio surdo e adeus):
o amplo espaço da pétala, o umbral
aberto para um céu sem morte — enfim,
a chegada à partida, o estar aqui

a olhar o mundo, tendo o mundo e o tempo
a florir sob as pálpebras, sentindo
o deserto estrelado, o mel vertido

no que foi um destino sem certeza
outra que a de ser homem. Peço. E vejo
tua infância no colo da beleza.


Alberto da Costa e Silva

então queres ser um escritor?















se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.

se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.

se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.

não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.

quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.

não há outra alternativa.

e nunca houve.



Charles Bukowski

Terra Desolada (trecho)


















Abril é o mais cruel dos meses, germina
Lilases da terra morta, mistura
Memória e desejo, aviva
Agônicas raízes com a chuva da primavera.
O inverno nos agasalhava, envolvendo
A terra em neve deslembrada, nutrindo
Com secos tubérculos o que ainda restava de vida.
O verão; nos surpreendeu, caindo do Starnbergersee
Com um aguaceiro. Paramos junto aos pórticos
E ao sol caminhamos pelas aleias de Hofgarten,
Tomamos café, e por uma hora conversamos.
Big gar keine Russin, stamm’ aus Litauen, echt deutsch.
Quando éramos crianças, na casa do arquiduque,
Meu primo, ele convidou-me a passear de trenó.
E eu tive medo. Disse-me ele, Maria,
Maria, agarra-te firme. E encosta abaixo deslizamos.
Nas montanhas, lá, onde livre te sentes.
Leio muito à noite, e viajo para o sul durante o inverno.
Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham
Nessa imundície pedregosa? Filho do homem,
Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol,
E as árvores mortas já não mais te abrigam,
nem te consola o canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto


De tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.




T. S. Eliot. Tradução de Ivan Junqueira

O Tempo seca o Amor

O tempo seca a beleza, seca o amor, seca as palavras. Deixa tudo solto, leve, desunido para sempre como as areias nas águas. O tempo seca a ...

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