Mas*















tardes de borrasca –
todos à tasca!

Trucavam: cem mais cem!
Que Deus no além
lhes perdoe (Amem!).

Apostas, riscos, bis!
Quem ganha faz um x
com giz.

Tardes de borrasca.
Encargos graves
na tasca.


.
Em russo:

А в ненастные дни

Собирались они
Часто;

Гнули — бог их прости! —
От пятидесяти
На сто,

И выигрывали,
И отписывали
Мелом.

Так, в ненастные дни,
Занимались они
Делом.

Aleksander Púchkin (Алекса́ндр Пу́шкин).. [tradução Haroldo de Campos].
* Esta Epígrafe em versos ao conto “A dama de espadas” de Aleksander Púchkin foi traduzida, a pedido de Boris Schnaiderman, por Haroldo de Campos.

Lista de desejos


















Escrever como se lesse.

Chorar para lavar os olhos, lavar os olhos para não cair de vez.

Não aceitar a maçã, voltar ao Paraíso, comer a maçã e ser expulso de lá.

Vender a mãe, entregar a sósia.

Apartar o sujeito de um verbo encrenqueiro com uma corajosa vírgula.

Piar para os passarinhos, miar para os passarinhos, latir para os passarinhos, viver entre eles.

Contar quantas vezes falei com carinho a palavra pai.

Financiar um miliciano que me proteja de mim.

Jogar amanhã na loteria de hoje. Não só acertar como ganhar a grana.

Dormir um pouco ressacado e acordar absolutamente bêbado.

Cortar os cabelos de Rapunzel enquanto, agarrado a eles, subo ao seu quarto.

Pedir exílio ao meu lado solar.

Conversar com estranhos coisas estranhas.

Cantar no chuveiro, ser aplaudido no Municipal.

Andar dez quilômetros, emagrecer cem.

Gerenciar o silêncio no grito.

Reatar a amizade do cravo com a rosa.

Rir daquele dia triste que começou com um riso.

Dirimir a dúvida dos sapos.

Voltar à civilidade.

Ler como se escrevesse.


Alexandre Brandão 

Torso arcaico de Apolo
























Não conhecemos a sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado

Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.

De outro modo ergue-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros
E não tremeria assim, como pele selvagem.

E nem explodiria para além de todas as suas fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: precisas mudar de vida.

.

Em alemão:




Archaïscher Torso Apollos

Wir kannten nicht sein unerhörtes Haupt,
darin die Augenäpfel reiften. Aber
sein Torso glüht noch wie ein Kandelaber,
in dem sein Schauen, nur zurückgeschraubt,

sich hält und glänzt. Sonst könnte nicht der Bug
der Brust dich blenden, und im leisen Drehen
der Lenden könnte nicht ein Lächeln gehen
zu jener Mitte, die die Zeugung trug.

Sonst stünde dieser Stein entstellt und kurz
unter der Schultern durchsichtigem Sturz
und flimmerte nicht so wie Raubtierfelle;

und bräche nicht aus allen seinen Rändern
aus wie ein Stern: denn da ist keine Stelle,
die dich nicht sieht. Du mußt dein Leben ändern.



Rainer Maria Rilke, em “Outra parte dos novos poemas” (1926). in: FAUSTINO, Mário. Poesia completa e traduzida. [Org. Benedito Nunes]. São Paulo: Max Limonard, 1985, p.262-263.

Antígona

Como te amo? Não sei de quantos modos vários
Eu te adoro, mulher de olhos azuis e castos;
Amo-te co’o fervor dos meus sentidos gastos;
Amo-te co’o fervor dos meus preitos diários.

É puro o meu amor, como os puros sacrários;
É nobre o meu amor, como os mais nobres fastos;
É grande como os mares altíssonos e vastos;
É suave como o odor de lírios solitários.

Amor que rompe enfim os laços crus do Ser;
Um tão singelo amor, que aumenta na ventura;
Um amor tão leal que aumenta no sofrer;

Amor de tal feição que se na vida escura
É tão grande e nas mais vis ânsias do viver,
Muito maior será na paz da sepultura!


Fernando Pessoa
Ilha Terceira
6-1902
Pessoa por Conhecer – Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990. – 121.
1ª publ.:«Sonetos de Amor». José Blanco. in Colóquio-Letras, nº 88. Lisboa. F. C. Gulbenkian, Nov. 1985.

Não comerei da alface a verde pétala



















Não comerei da alface a verde pétala
Nem da cenoura as hóstias desbotadas
Deixarei as pastagens às manadas
E a quem mais aprouver fazer dieta.

Cajus hei de chupar, mangas-espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas pêras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita no cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro; dêem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei, feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.



Vinicius de Moraes

O Deus de Cada Homem















Quando digo “meu Deus”,
afirmo a propriedade.
Há mil deuses pessoais
em nichos da cidade.

Quando digo “meu Deus”,
crio cumplicidade.
Mais fraco, sou mais forte
do que a desirmandade.

Quando digo “meu Deus”,
grito minha orfandade.
O rei que me ofereço
rouba-me a liberdade.

Quando digo “meu Deus”,
choro minha ansiedade.
Não sei que fazer dele


Carlos Drummond de Andrade

Líquido















Teu beijo é tanto
é tamanho
que nele me dispo,
me banho,
me adoço.
Deixo no pescoço
uma gota ativa
pra te manter molhado
enquanto posso.
Essa umidade me conserva viva.



Flora Figueiredo, em "Calçada de verão". Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.













Quem era?
Quem é esse homem deitado?
Quem dorme naquele caixão?
Irmão noivo amante?
O apocalipse antecipa
O inferno consegue ganhar uma posição
O dia estava leve
A noite tem o peso do sangue injusto



Célestin Monga - livro “Fragmentos de um Crepúsculo Ferido”. Traduzidos por Estela Abreu dos Santos, Editora Contraponto

protestar


 















    entramos na rua,
pedimos licença a quem se
encontrava desajustado,
dissemos-lhes, é aqui
um protesto com suspiros,
um protesto de respirar,
com flores, de flores.

     entramos na rua com roupas
de revolução,
indelicadamente,
sorrindo aos outros,
como se um sorriso fosse
indelicado, ah, mas era.

     como que se entrar fosse
atravessar um território, uma
fronteira, boca sobre boca,
atravessá-las, pedimos licença
a quem tinha olhos a gente,
dissemos-lhes, será rápido,
é um protesto com suspiros,
um ato de respiração.

     perguntaram-nos, que desejam.
dissemos-lhes, é pouco, custa
pouco, respirar como se fosse
ainda a única coisa que nos resta.
suspirar é ainda uma grande arte.
e respondeu-nos, deve de ser
uma crítica ao governo. e era sim.
um protesto com suspiros, e os outros
começaram a suspirar como quem
amigavelmente começa a nutrir
um respeito.


Enzo Fuji

Data














Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação


Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rastro
Tempo da ameaça


Sophia de Mello Breyner Andresen

TÃO ÍNTIMO
















Minha porta: olho no olho.
Ela tão crespa, uma onda, um veludo verde.
Era montanha, uma terra firme, uma noite e o cisco.
Outro dia de caos e os cães ali ladrando,
a cidade fria de novos açoites, o frio da alma esquina
O olhar vazio dela
era meu vestido de renda chinesa.
A cidade crua de gente era uma nudez de passagem.
O fio trágico, o fino pano, o meio frio dentro de nossos pés,
os pés nus das estátuas de gesso.
O copo dele vazio de farsas
no meu sorriso de avisos, reclames, faz desamores bestiais.
A cidade anoitecendo, a terra ficando mais firme
era a semente, dor de respirar fundo... um raio x
O cheio dela é que esvazia
e vai de espantos me encher (ar, preciso de ar...):
é uma sede num dialeto, espiral
de uma língua da mais fina trama.
Tudo tão istmo... que me esperanto.



Patrícia Porto - Cabeça de Antígona

Soneto XXXII















Se sobreviveres à plenitude do meu dia,
Quando a Morte vil com o pó cobrir meus ossos,
E, por sorte, mais uma vez releres
Estes pobres e rudes versos de teu falecido amante,

Compara-os com o apuro do tempo,
E embora sejam superados por outras plumas,
Guarda-os pelo meu amor, não pela rima,
Suplantada pela excelência de homens mais felizes.

Ó poupe-me, salvo este pensamento amoroso:
‘Se a Musa de meu amigo tivesse crescido com a sua idade,
Seu amor gerou um nascimento mais caro do que este
Para cerrar as fileiras mais bem equipado;

Mas como ele morreu, e os poetas se provaram melhores,
Lerei seus poemas pelo estilo e, os dele, pelo seu amor’.


Sonnet

If thou survive my well-contented day,
When that churl death my bones with dust shall cover
And shalt by fortune once more re-survey
These poor rude lines of thy deceased lover:

Compare them with the bett'ring of the time,
And though they be outstripped by every pen,
Reserve them for my love, not for their rhyme,
Exceeded by the height of happier men.

O then vouchsafe me but this loving thought,
'Had my friend's Muse grown with this growing age,
A dearer birth than this his love had brought
To march in ranks of better equipage:

But since he died and poets better prove,
Theirs for their style I'll read, his for his love'.

William Shakespeare - Tradução de Thereza Christina Rocque da Motta

Quase











Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minhalma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...
Os braços duma cruz
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar...



Mário de Sá-Carneiro

Descobrimento

Seringueiros - Cândido Portinari

























Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.



Mário de Andrade

Mater















Tu, grande Mãe!… do amor de teus filhos escrava,
Para teus filhos és, no caminho da vida,
Como a faixa de luz que o povo hebreu guiava
À longe Terra Prometida.

Jorra de teu olhar um rio luminoso.
Pois, para batizar essas almas em flor,
Deixas cascatear desse olhar carinhoso
Todo o Jordão do teu amor.

E espalham tanto brilho as asas infinitas
Que expandes sobre os teus, carinhosas e belas,
Que o seu grande clarão sobe, quando as agitas,
E vai perder-se entre as estrelas.

E eles, pelos degraus da luz ampla e sagrada,
Fogem da humana dor, fogem do humano pó,
E, à procura de Deus, vão subindo essa escada,
Que é como a escada de Jacó.


Olavo Bilac, de ‘Alma Inquieta’ (1888), em “Poesias”. Olavo Bilac. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1978.

Ensinamentos

















Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente,
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.



Adélia Prado, em “Bagagem”. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

De joelhos
























“Bendita seja a Mãe que te gerou.”
Bendito o leite que te fez crescer
Bendito o berço aonde te embalou
A tua ama, pra te adormecer!

Bendita essa canção que acalentou
Da tua vida o doce alvorecer …
Bendita seja a Lua, que inundou
De luz, a Terra, só para te ver …

Benditos sejam todos que te amarem,
As que em volta de ti ajoelharem
Numa grande paixão fervente e louca!

E se mais que eu, um dia, te quiser
Alguém, bendita seja essa Mulher,
Bendito seja o beijo dessa boca!!



Florbela Espanca, em “Livro de Mágoas”. Lisboa: Editorial Estampa, 2012.

Minha Mãe
















Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fronte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.

Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão, que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu.

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Dize que eu parta, ó mãe, para a saudade.
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe.


Vinicius de Moraes (Rio de Janeiro , 1933). em “O Caminho para a Distância”. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

De Mãe

Mãe preta, 1912, Lucílio de Albuquerque - Museu de Belas Artes da Bahia, Salvador...
























O cuidado de minha poesia
aprendi foi de mãe,
mulher de pôr reparo nas coisas,
e de assuntar a vida.

A brandura de minha fala
na violência de meus ditos
ganhei de mãe,
mulher prenhe de dizeres,
fecundados na boca do mundo.

Foi de mãe todo o meu tesouro
veio dela todo o meu ganho
mulher sapiência, yabá,
do fogo tirava água
do pranto criava consolo.

Foi de mãe esse meio riso
dado para esconder
alegria inteira
e essa fé desconfiada,
pois, quando se anda descalço
cada dedo olha a estrada.

Foi mãe que me descegou
para os cantos milagreiros da vida
apontando-me o fogo disfarçado
em cinzas e a agulha do
tempo movendo no palheiro.

Foi mãe que me fez sentir
as flores amassadas
debaixo das pedras
os corpos vazios
rente às calçadas
e me ensinou,
insisto, foi ela
a fazer da palavra
artifício
arte e ofício
do meu canto
da minha fala.



Conceição Evaristo, em “Poemas da recordação e outros movimentos”. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

Canção para minha mãe






















E sem um gesto, sem um não, partias!
Assim a luz eterna se extinguia!
Sem um adeus, sequer, te despedias,
Atraiçoando a fé que nos unia!

Terra lavrada e quente,
Regaço de um poeta criador,
Ias-te embora antes do sol poente,
Triste como semente sem calor!

Ias, resignada, apodrecer
À sombra das roseiras outonais!
Cor da alegria, cântico a nascer,
Trocavas por ciprestes pinheirais!

Mas eu vim, deusa desenganada!
Vim com este condão que tu conheces,
E toquei essa carne macerada
Da vida palpitante que mereces!

Porque tu és a Mãe!
Pariste um dia aos gritos e aos arrancos,
E parirás ainda pelo tempo além,
Mesmo ser madre e de cabelos brancos!

És e serás a faia que balança ao vento
E não quebra nem cede!
Se te pediu a paz do esquecimento,
Também a força de lutar te pede!

Respira, pois, seiva da duração,
Nos meus pulmões até, se te cansaste;
Mas que eu sinta bater o coração
No peito onde em menino me embalaste.

…………………..(S. Martinho de Anta, 13 de julho de 1946)

Miguel Torga, do (‘Diário III’), em “Diário. Vols. I a IV”. 5ª ed., Lisboa: Dom Quixote, 1999.

Fala de mãe e filho






















«Meu filho:
onde vais
que tens do rio o caminhar?»

Não espreites a estrada, mãe,
que eu nasci
onde o tempo se despenhou.

«Meu filho:
onde te posso lembrar
se apenas te dei nome para te embalar ?»

Mãe, minha mãe:
não te pese saudade
que eu voltarei sempre
como quem chega do mar.

«Meu filho:
onde te posso nascer
se meu ventre seco
nunca ninguém gerou?»

Mãe, nascerás sempre
na pedra em que te escuto:
a tua ausência, meu luto,
teu corpo para sempre insepulto.

Mia Couto, em “Tradutor de Chuvas”. Lisboa: Editorial Caminho, 2011

Soneto de Maio


















Suavemente Maio se insinua
Por entre os véus de Abril, o mês cruel
E lava o ar de anil, alegra a rua
Alumbra os astros e aproxima o céu.

Até a lua, a casta e branca lua
Esquecido o pudor, baixa o dossel
E em seu leito de plumas fica nua
A destilar seu luminoso mel.

Raia a aurora tão tímida e tão frágil
Que através do seu corpo transparente
Dir-se-ia poder-se ver o rosto

Carregado de inveja e de presságio
Dos irmãos Junho e Julho, friamente
Preparando as catástrofes de Agosto...


Vinícius de Moraes - Ouro Preto, maio de 1967

Uns Versos























Sou sua noite, sou seu quarto
Se você quiser dormir
Eu me despeço
Eu em pedaços
Como silêncio ao contrário
Enquanto espero
Escrevo uns versos
Depois rasgo


Sou seu fado, sou seu bardo
Se você quiser ouvir
O seu eunuco, o seu soprano
Um seu arauto
Eu sou o sol da sua noite em claro
Um rádio
Eu sou pelo avesso sua pele,
O seu casaco
Se você vai sair
O seu asfalto
Se você vai sair
Eu chovo
Sobre o seu cabelo pelo seu intinerário
Sou eu o seu paradeiro
Em uns versos que eu escrevo
Depois rasgo
E depois rasgo


Adriana Calcanhotto

Ainda que mal

















Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor.


Carlos Drummond de Andrade

O GÓLEM












Se (o Crátilo nos leva a inferi-lo)
O nome é o arquétipo da coisa,
Já nas letras de rosa está a rosa
E todo o Nilo na palavra Nilo.

Feito de consoantes e vogais,
Talvez exista um Nome, que a essência
De Deus encerre e que a Onipotência
Guarde em letras e sílabas cabais.

Adão e as estrelas souberam
No Jardim. Nas ferrugens do pecado
(Dizem os cabalistas) foi borrado
E as gerações já o perderam.

Os artifícios e o candor do homem
Não têm fim. Bem sabemos que houve um dia
Em que o povo de Deus buscava o Nome
Pelas vigílias dos Judeus sem guia.

Não à maneira de outras que uma vaga
Sombra insinuam numa vaga história,
Ainda está verde e vivo na memória
Judá Leão, que era rabino em Praga.

Sedento de saber o que Deus sabe,
Judá Leão tentou permutações
De letras e complexas variações
E pronunciou o Nome que é a Chave,

A Porta, o Eco, o Hóspede e o Paço,
Num boneco em que os seus dons inumanos
Lançou para ensinar a ele os arcanos
Das Palavras, do Tempo e do Espaço.

O simulacro alçou os sonolentos
Olhos e entreviu formas e cores
Sem entender, perdidos em rumores,
E ensaiou temerosos movimentos.

Gradualmente se viu (tal como nós)
Aprisionado na rede sonora
De Antes, Depois, Ontem, Enquanto, Agora,
Direita, Esquerda, Eu, Tu, Eles, Vós.

(O cabalista que oficiou o nume
À vasta criatura chamou Gólem;
Estas verdades as refere Scholem
En um douto lugar do seu volume.)

O rabi lhe explicava o universo
“Este é meu pé; o teu; esta é a soga”
E ao cabo de anos logrou que o perverso
Varresse bem ou mal a sinagoga.

Houve talvez um erro na grafia
Ou na articulação do Sacro Nome;
A despeito de tal feitiçaria,
Falar não soube o aprendiz de homem.

Seus olhos menos de homem que de cão,
E ainda menos de cão do que de coisa,
Seguiam o rabi na duvidosa
Penumbra dos pertences da prisão.

Algo anormal e tosco houve no Gólem,
Já que ao seu passo o gato do rabino
Se escondia. (Esse gato olvida Scholem
Mas, através do tempo, o descortino).

Elevando a seu Deus mãos filiais,
As devoções do seu Deus copiava,
Ou tolo e sorridente, se curvava
Em côncavos meneios orientais.

O rabi o mirava com ternura
E com algum horror. Como (dizia)
Pude engendrar esta penosa cria
E deixei a inação, que é a cordura?

Por que fui agregar à infinita
Série um símbolo a mais? Por que a vã
Trama eterna fui dar uma outra escrita,
Outra causa, outro efeito e outro afã?

Nos momentos de angústia e de luz vaga
A seu Gólem os olhos estendia.
Quem nos dirá as coisas que sentia
Deus, ao olhar o seu rabino em Praga?

.

EL GOLEM

Si (como afirma el griego en el cratilo)
El nombre es arquetipo de la cosa
En las letras de ‘rosa’ está la rosa
Y todo el nilo en la palabra ‘nilo’.

Y, hecho de consonantes y vocales,
Habrá un terrible nombre, que la esencia
Cifre de dios y que la omnipotencia
Guarde en letras y sílabas cabales.

Adán y las estrellas lo supieron
En el jardín. La herrumbre del pecado
(Dicen los cabalistas) lo ha borrado
Y las generaciones lo perdieron.

Los artificios y el candor del hombre
No tienen fin. Sabemos que hubo un día
En que el pueblo de dios buscaba el nombre
En las vigilias de la judería.

No a la manera de otras que una vaga
Sombra insinúan en la vaga historia,
Aún está verde y viva la memoria
De judá león, que era rabino en praga.

Sediento de saber lo que dios sabe,
Judá león se dio a permutaciones
De letras y a complejas variaciones
Y al fin pronunció el nombre que es la clave,

La puerta, el eco, el huésped y el palacio,
Sobre un muñeco que con torpes manos
Labró, para enseñarle los arcanos
De las letras, del tiempo y del espacio.

El simulacro alzó los soñolientos
Párpados y vio formas y colores
Que no entendió, perdidos en rumores
Y ensayó temerosos movimientos.

Gradualmente se vio (como nosotros)
Aprisionado en esta red sonora
De antes, después, ayer, mientras, ahora,
Derecha, izquierda, yo, tú, aquellos, otros.

(El cabalista que ofició de numen
A la vasta criatura apodó golem;
Estas verdades las refiere scholem
En un docto lugar de su volumen.)

El rabí le explicaba el universo
“Esto es mi pie; esto el tuyo, esto la soga.”
Y logró, al cabo de años, que el perverso
Barriera bien o mal la sinagoga.

Tal vez hubo un error en la grafía
O en la articulación del sacro nombre;
A pesar de tan alta hechicería,
No aprendió a hablar el aprendiz de hombre.

Sus ojos, menos de hombre que de perro
Y harto menos de perro que de cosa,
Seguían al rabí por la dudosa
Penumbra de las piezas del encierro.

Algo anormal y tosco hubo en el golem,
Ya que a su paso el gato del rabino
Se escondía. (ese gato no está en scholem
Pero, a través del tiempo, lo adivino.)

Elevando a su dios manos filiales,
Las devociones de su dios copiaba
O, estúpido y sonriente, se ahuecaba
En cóncavas zalemas orientales.

El rabí lo miraba con ternura
Y con algún horror. ‘¿Cómo’ (se dijo)
‘Pude engendrar este penoso hijo
Y la inacción dejé, que es la cordura?’

‘¿Por qué di en agregar a la infinita
Serie un símbolo más? ¿por qué a la vana
Madeja que en lo eterno se devana,
Di otra causa, otro efecto y otra cuita?’

En la hora de angustia y de luz vaga,
En su golem los ojos detenía.
¿Quién nos dirá las cosas que sentía
Dios, al mirar a su rabino en praga?

Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

De esperas construímos o amor intenso e súbito













De esperas construímos o amor intenso e súbito
que encheu as tuas mãos de sol e a tua boca de beijos.
Em estranhos desencontros nos amamos.
Havia o rio mas sempre ficávamos na margem.
Eu tocava o teu peito e os teus olhos e, nas minhas mãos,
a tarde projectava as suas grandes sombras
enquanto as gaivotas disputavam sobre a água
talvez um peixe inquieto, algo que nunca pudemos ver.
As nossas bocas procuravam-se sempre, ávidas e macias
E por muito tempo permaneciam assim, unidas,
machucando-se, torturando as nossas línguas quase enlouquecidas.
Depois olhávamo-nos nos olhos.
No mais profundo silêncio.
E, sem palavras, partíamos com as mãos docemente amarradas
e os corações estoirando uma alegria breve
Quando a noite descia apaixonada
Como o longo beijo da nossa despedida.

Joaquim Pessoa

Elegia de maio


















Longo, lento, infindável o crepúsculo.
Na larga enseada uma tinta imprecisa
antes do lusco-fusco
insinua-se em tudo, esmaiada.
Corre um brusco arrepio de brisa,
encrespa-se de leve a água vidrada.
Difuso em tudo, o ouro da luz de outono
resiste, como a clara
recordação de um longo dia pára
e ainda hesita, antes da noite e o sono.
Escurecer que é quase amanhecer...
Um não sei quê de claridade escura
diluído em tudo, em tudo arde e perdura:
já é quase noite o longo dia
e a noite espera e sonha: ainda é dia.
Lá no alto, o adeus da tarde que ficou...
É dia ainda, o sol acorda agora
no largo oceano o sono de outra aurora,
mas derrama no seio do meu rio
todo o ouro do dia que passou.
Serena esta luz de ouro em meu outono:
recordação, antes do grande sono...


Augusto Meyer,
em “Poesias (1922-1955)".
Rio de Janeiro: Livraria São José, 1957.

Lembrança de Maio















Meu coração bate desamparado
onde minhas pernas se juntam.
É tão bom existir!
Seivas, vergônteas, virgens,
tépidos músculos
que sob a roupa rebelam-se.
No topo do altar ornado
com flores de papel e cetim
aspiro, vertigem de altura e gozo,
a poeira nas rosas, o afrodisíaco,
incensado ar de velas.
Santa sobre os abismos,
à voz do padre abrasada
eu nada objeto,
lírica e poderosa.



Adélia Prado

A AREIA DAS URNAS











Verde-mofo é a casa do esquecimento.
Diante de cada porta flutuante azuleja teu cantor decapitado.
Ele faz rufarem para ti os tambores de musgo e amarga vulva;
com artelho supurado risca na areia tua sobrancelha.
Desenha-a mais comprida do que era, e o vermelho de teus lábios.
Enches aqui as urnas e degustas teu coração.


Em alemão:


DER SAND AUS DEN URNEN
Schimmelgrün ist das Haus des Vergessens.
Vor jedem der wehenden Tore blaut dein enthaupteter Spielmann.
Er schlägt dir die Trommel aus Moos und bitterem Schamhaar;
mit schwärender Zehe malt er im Sand deine Braue.
Länger zeichnet er sie als sie war, und das Rot deiner Lippe.
Du fühlst hier die Urnen und speisest dein Herz.

Paul Celan, em "Cristal". Paul Celan. [seleção e tradução Claudia Cavalcante]. São Paulo: Iluminuras, 1999.

Casa Velha



















esse poema é uma casa com vista para os fundos
nele há notícias velhas de escombros
uma parede infiltrada
arranhões e fraturas

parece um poema antigo desabitado
mas é só um poema em demolição

casa pequena posta abaixo
para a construção insalubre
de um arranha céu
na garganta
feito nó
apertado
- uma cinta


Patrícia Porto - Cabeça de Antígona

O Tempo seca o Amor

O tempo seca a beleza, seca o amor, seca as palavras. Deixa tudo solto, leve, desunido para sempre como as areias nas águas. O tempo seca a ...

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