Se vier alguém



















Se vier alguém
de longe
com uma língua
que talvez encerre
os sons
com o relinchar da égua
ou
o piar
dos melros novos
ou
mesmo como uma serra rangente
que corta tudo o que é próximo –

Se vier alguém
de longe
com movimentos de cão
ou
talvez de ratazana
e se for Inverno
veste-o bem quente
pode também ser
que ele tenha fogo debaixo das solas
(talvez cavalgasse
num meteoro)
não lhe ralhes
se o teu tapete esburacado gritar –

Um estranho tem sempre
a pátria nos braços
como uma órfã
para a qual talvez nada mais
busque do que uma sepultura.

Em: “Fuga e Transfiguração” (1959)


Kommt einer von ferne

Kommt einer
von ferne
mit einer Sprache
die vielleicht die Laute
verschließt
mit dem Wiehern der Stute
oder
dem Piepen
junger Schwarzamseln
oder
auch wie eine knirschende Säge
die alle Nähe zerschneidet

Kommt einer
von ferne
mit Bewegungen des Hundes
oder
vielleicht der Ratte
und es ist Winter
so kleide ihn warm
kann auch sein
er hat Feuer unter den Sohlen
(vielleicht ritt er
auf einem Meteor)
so schilt ihn nicht
falls dein Teppich durchlöchert schreit –

Ein Fremder hat immer
seine Heimat im Arm
wie eine Waise
für die er vielleicht nichts
als ein Grab sucht.

In: “Flucht Und Verwandlung” (1959)

Nelly Sachs. 

Se vier alguém. In: __________. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Estudo introdutivo de Joseph Bernfeld. Rio de Janeiro, GB: Editora Opera Mundi, 1975. p. 154-155. (“Biblioteca dos Prêmios Nobel de Literatura”)

Credo


















Não acho meu caminho: no velado espaço,
Não se avista nenhuma estrela a cintilar;
E não se ouve também nenhum sussurro no ar
De voz vivente, mas um som distante e escasso
Que apenas chega a mim como imperial compasso
De música perdida, para acompanhar
Formosos dedos de anjos, postos a trançar
Grinaldas, onde as rosas não deixaram traço.

Não, não, vislumbre algum, nenhum chamado vem
A quem saúda, com receios tão humanos,
O caos denso e terrível que o negror induz;
Pois através de tudo, – muito acima e além, –
Eu conheço a remota mensagem dos anos,
E pressinto a chegada gloriosa da Luz.


Credo

I cannot find my way: there is no star
In all the shrouded heavens anywhere;
And there is not a whisper in the air
Of any living voice but one so far
That I can hear it only as a bar
Of lost, imperial music, played when fair
And angel fingers wove, and unaware,
Dead leaves to garlands where no roses are.

No, there is not a glimmer, nor a call,
For one that welcomes, welcomes when he fears,
The black and awful chaos of the night;
For through it all – above, beyond it all –
I know the far-sent message of the years,
I feel the coming glory of the Light.


Edwin Arlington Robinson. 

Credo / Credo. Tradução de Paulo Vizioli. In: VIZIOLI, Paulo (Seleção e Tradução). Poetas norte-americanos. Antologia bilíngue. Edição comemorativa do bicentenário da independência dos Estados Unidos da América: 1776-1976. Rio de Janeiro, RJ: Lidador, 1974. Em inglês e em português: p. 48

E se depois de tantas palavras...


















E se depois de tantas palavras,
não sobrevive a palavra!
Se depois das asas dos pássaros,
não sobrevive o pássaro parado!
Mais valeria, na verdade,
que comam tudo e acabemos!

Ter nascido para viver da nossa morte!
Levantar-se do céu rumo à terra
por seus próprios desastres
e espiar o momento de apagar com a sua
sombra as suas trevas!
Mais valeria, francamente,
que comam tudo e tanto faz!...

E se depois de tanta história, sucumbimos,
não já de eternidade,
mas dessas coisas simples, como estar
em casa ou pôr-se a matutar!
E se em seguida descobrimos,
subitamente, que vivemos,
a avaliar pela altura dos astros,
pelo pente e as nódoas do lenço!
Mais valeria, na verdade,
que comam tudo, sem dúvida!

Dir-se-á que temos
num dos olhos muita pena
e também no outro muita pena
e nos dois, quando olham, muita pena...
Então... Claro!... Então... nem uma só palavra!

¡‎Y si después de tantas palabras...

¡Y si después de tantas palabras,
no sobrevive la palabra!
¡Si después de las alas de los pájaros,
no sobrevive el pájaro parado!
¡Más valdría, en verdad,
que se lo coman todo y acabemos!

¡Haber nacido para vivir de nuestra muerte!
¡Levantarse del cielo hacia la tierra
por sus propios desastres
y espiar el momento de apagar con su sombra
su tiniebla!
¡Más valdría, francamente,
que se lo coman todo y qué más da...!

¡Y si después de tanta historia, sucumbimos,
no ya de eternidad,
sino de esas cosas sencillas, como estar
en la casa o ponerse a cavilar!
¡Y si luego encontramos,
de buenas a primeras, que vivimos,
a juzgar por la altura de los astros,
por el peine y las manchas del pañuelo!
¡Más valdría, en verdad,
que se lo coman todo, desde luego!

Se dirá que tenemos
en uno de los ojos mucha pena
y también en el otro, mucha pena
y en los dos, cuando miran, mucha pena...
Entonces... ¡Claro!... Entonces... ¡ni palabra!

César Vallejo. 

E se depois de tantas palavras... Tradução de José Bento. In: __________. César Vallejo: antologia. Seção “Poemas Humanos”. Selecção, tradução e prólogo de José Bento. 1. ed. Porto, PT: Editora Limiar, nov. 1981. p. 68. (Colecção ‘Os Olhos e a Memória’; n. 16)

Refúgio da Arte













Quando a saudade me aperta
O coração que suspira,
Confio as mágoas à lira,
Boa amiga da hora incerta.

Com os olhos em névoa imersos,
Na tristeza que me invade,
Eu não domino a vontade
De tudo exprimir em versos.

E a estrofe que em meu recanto
Componho ao sol que declina,
É uma concha onde em surdina
Se ouve um murmúrio de pranto...

Ouro não tendo nem gemas
Para depor no teu colo,
Da pobreza eu me consolo
Dando-te poemas e poemas.

E na ânsia que me consome
De bordar uma obra-prima,
Na estrela d’Alva da rima
Faço brilhar o teu nome.

Com versos – apenas quatro –
Preparo a flórea moldura
Em que esplende a fronte pura
Que mais que tudo idolatro.

A vida é bela, mas triste;
Flores e espinhos reparte.
É só no refúgio da Arte
Que um pouco de azul existe.

Gustavo Teixeira


Em: “Colar de Rimas”
TEIXEIRA, Gustavo. Refúgio da arte. In: __________. Poesias completas. Prefácio de Cassiano Ricardo. São Paulo, SP: Anhambi, 1959. p. 396-397.

O Mar
























Antes que o sonho (ou o terror) tecesse
mitologias e cosmogonias,
antes que o tempo se cunhasse em dias,
o mar, o sempre mar, já estava e era.
Quem é o mar? Quem é o violento
e antigo ser que corrói os pilares
da Terra e é um mar e muitos outros
e abismo e resplendor e acaso e vento?
Quem o olha o vê pela primeira
vez, sempre. Com o assombro que as coisas
elementares deixam, as formosas
tardes, a lua, o fogo, uma fogueira.
Quem é o mar, quem sou? Só saberei
no dia seguinte da agonia.

Em: “O outro, o mesmo” (1964)

El Mar

Antes que el sueño (o el terror) tejiera
mitologías y cosmogonías,
antes que el tiempo se acuñara en días,
el mar, el siempre mar, ya estaba y era.
¿Quién es el mar? ¿Quién es aquel violento
y antiguo ser que roe los pilares
de la tierra y es uno y muchos mares
y abismo y resplandor y azar y viento?
Quien lo mira lo ve por vez primera,
siempre. Con el asombro que las cosas
elementales dejan, las hermosas
tardes, la luna, el fuego de una hoguera.
¿Quién es el mar, quién soy? Lo sabré el día
ulterior que sucede a la agonia.

En: “El otro, el mismo” (1964)

Jorge Luis Borges. 

El mar / O mar. Tardução de Heloisa Jahn. In: __________. Nova antologia pessoal. 1 ed. Traduções de Davi Arrigucci Jr., Heloisa Jahn e Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. Em espanhol: p. 290; em português: p. 26.

Aos que caminham






















essa dança que faço é comigo,
o espelho colocado ao in
verso no solo
solto e suspenso
com esses arames bambos por onde despenco

o ofício do corpo:
essa dança no quarto,
passagem

o ofício das horas: escorrer
pelo olho através da rachadura
atraído
de ilhar

se é vão de certeza
no ofício de existir ao
contrário de tantos em
resposta: vou espuma

desarmei os gatilhos
mas restou-me tuas vestes
que hei de pendurar como bandeira
no ofício da morte:
saber de todos os meus caídos

mergulhada na terra
cavando da sorte
- vestida de amor e lutas
no ofício do sonho

Patricia Porto

A ninguém preciso dizer adeus














A ninguém preciso dizer adeus:
todos têm suas ocupações, e estão longe, embebidos
em seus enganos, que a felicidade imitam.
A ninguém preciso dizer adeus:
nenhum espaço formará lugar de ausência,
pois a presença nunca formou nenhum espaço.
A ninguém preciso dizer adeus:
parece triste partir assim, sem lembrança nem lagrima.
Não é, porém, mais alegre, desaparecer ao longe
sem ter deixado atrás nem lagrimas nem lembrança?

Cecília Meireles, ‘Dispersos (1918-1964)’. em “Poesia completa”.

Prece de silêncio mutável
















de todas as cantorias dos pássaros
de todos os sons dos ventos
de todos os sons das chuvas
de todas as palavras ditas com amor
de todo canto do fundo do peito cantado
de toda verdade essência música poesia
de todo som da verdade
entrego ao som maior do silêncio
que qualquer palavra que digas aqui
e que qualquer palavra que leias
possa reverberar em pranto os entre tantos
que um dia foram tantos
e que hoje é canto
que o amor sabe onde
o silêncio nos sabe mais
que qualquer palavra
e que apesar de toda errância
a palavra nos possa ser sempre:
semente cristalina
diamante
em constante terna e eterna
mutação

Luiza Maciel Nogueira

Teu corpo seja brasa

















teu corpo seja brasa
e o meu a casa
que se consome no fogo

um incêndio basta
pra consumar esse jogo
uma fogueira chega
pra eu brincar de novo


Alice Ruiz

Desfilam
















Emergem do passado, novamente,
Fantasmas, que marcaram o viver,
Toldando cada novo amanhecer
Com sombra visionária, no presente.

Manchada por angústias, de repente,
A alma, que não deixa de sofrer,
Espalha dor profunda em todo o ser
E acaba magoada p'lo que sente.

Desfilam, à porfia, pela mente,
Memórias, desfocadas, a dizer
Que nunca, nunca mais, se há-de esquecer.

E tudo o que o viver de combatente
Impôs, a cada um, como dever,
Há-de marcá-lo sempre, até morrer.

Vítor Cintra  - do livro: Passos da História

Poema Relativo

















Vem, ó
bem-amada
Junto à minha casa
Tem um regato (até quieto o regato).

Não tem pássaros que pena!

Mas os coqueiros fazem,
Quando o vento passa,
Um barulho que às vezes parece
Bate-bate de asas.

Supõe, ó bem-amada,
Se o vento não sopra,
Podem vir borboletas
À procura das minhas jarras
Onde há flores debruçadas,
Tão debruçadas que parecem escutar.

Todos os homens têm seus crentes,
Ó bem-amada:
- os que pregam o amor ao próximo
e os que pregam a morte dele.

Mas tudo é pequeno
E ligeiro no mundo, ó amada.
Só o clamor dos desgraçados
É cada vez mais imenso!

Vem, ó bem-amada.
Junto à minha casa
Tem um regato até manso.
E os teus passos podem ir devagar
Pelos caminhos:
- aqui não há a inquietação
de se atravessar o asfalto

Vem, ó bem-amada,
Porque como te disse
Se não há pássaros no meu parque,
Pode ser, se o vento
Não soprar forte
Que venham borboletas.
Tudo é relativo
E incerto no mundo.
Também tuas sobrancelhas
Parecem asas abertas.


Jorge de Lima

O Poeta caminhando





















Eu vi o poeta caminhando pela avenida.
Ia garboso em sua gabardine.
No que pensava o poeta enquanto andava?
Anda o poeta.
Passa o poeta.
O poeta se mistura na multidão.
Quem é ele?
Aonde ele vai?
O que faz quando não escreve poesia?

Ninguém sabe quem ele é.
Ninguém sabe onde ele vai.
Ninguém o acompanha.
Seus passos mal tocam o chão.
O poeta flutua na permanência efêmera das coisas,
onde a espera é a única saída e o amor o único guardião.
Oro pelo poeta que passa!

Passam os carros, passam as horas.
Tudo passa nos olhos do poeta
e o que fica na superfície
são os versos que pingam
das lágrimas que ele esconde.

Lá vai o poeta descendo a avenida,
tudo largo, tudo vasto,
com sua túnica negra cortando a paisagem.
O poeta passeia enquanto tudo à sua volta
está imerso em uma névoa fina
que faz adormecer os homens.

Vive o poeta em sua imensa mansidão.
Assim ia, em sua gabardine, todo garboso,
o poeta Tanussi Cardoso.

Copacabana, 1/10/2000
Thereza Christina Rocque da Motta

Morrer

















Pois morrer é apenas isto:
cerrar os olhos vazios
e esquecer o que foi visto;

é não supor-se infinito,
mas antes fáustico e ambíguo,
jogral entre a história e o mito;

é despedir-se em surdina,
sem epitáfio melífluo
ou testamento sovina;

é talvez como despir
o que em vida não vestia
e agora é inútil vestir;

é nada deixar aqui:
memória, pecúlio, estirpe,
sequer um traço de si;

é findar-se como um círio
em cuja luz tudo expira
sem êxtase nem martírio.


Ivan Junqueira - De O Grifo (1983-86)

Resistir é preciso















a menina que voltou a viver pela poesia
e passou a dobrar calças todo dia
as mesmas dobras
as mesmas calças
nas mesmas horas
no mesmo lugar
não consegue mais escrever poesia

sua agonia ronda esse poema há uns dias


Fabio Rocha

Bandeira Branca


















Depois que a noite se aquieta sobre a terra
a cidade fica de pés molhados
andando descalça pelo mundo
...................................................................
e a lua e as estrelas
lá no céu
ficam embaralhadas sobre o asfalto
pondo arte e poesia no tapete do triste vagabundo.

Benedicto Monteiro - Bandeira Branca  - aos 18 anos de idade

Impressão digital
















Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandescente.

Inútil seguir vizinhos,
que ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.


António Gedeão

Ao Professor














Se erras no caminho,
Se a angústia te entorpece,
Se os horizontes te desanimam,
Se julgas não valer mais a pena,
Não te entregues!

Teu filme não passa nas telonas
Nem a tua linha do horizonte
Inspira autores de novelas
Ou a quem tem foco no vazio e nilismo!
Mas tu és vital,
Tu és o soldado principal desse fronte
Chamado, país Brasil!
Não desanimes!

Pouco importa como te chamem
Mestre, professora, tia ou dona da verdade,
Não se infle nem se espante
Nesse meio há quem te odeie e quem te ame
Siga em frente, com ou se sacerdócio
Não admita hiato ou divórcio
Não abandones!

Professe tua ação, tua emoção,
Seja o Marco oposto desse tempo em que
Se valoriza a matéria e se explora a miséria
Falando em revolução, transformação
E tu, em precárias salas de aula
Ao ser testemunho de vida
Faz, sozinha muita História
Sem esperar nenhuma glória
Abrindo espaços em mentes e
Mexendo com minha gente, de frente
Traz ainda esperança
A crianças, jovens e velhos,
Que em ti, único ser luz,
Seduz e remonta a estratégia
De mudar de verdade a vida
E sem nenhuma plateia,
Tu, professor, constrói
O resultado de tudo aquilo que
Muitos anunciam em cadeia Nacional
E só tu, age, no mundo Real!
Não te entregues, desanimes, não abandones,
Pois para muitos tu és...
Tu és é sempre será ...
O único projeto concreto de mudança, personalizado em tuas ações e gestos,
no teu recinto sagrado de ensinar e troca de vida diária:
A sala de aula!


Almir Ribeiro Miguel

Todo jardim começa com um sonho de amor

















Todo jardim começa com um sonho de amor.
Antes que qualquer árvore seja plantada
ou qualquer lago seja construído,
é preciso que as árvores e os lagos
tenham nascido dentro da alma.

Quem não tem jardins por dentro,
não planta jardins por fora
e nem passeia por eles...

Rubem Alves

Para os Mestres















Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos.
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.

Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza…

À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.

O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.

Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis sempre
Fitando o Sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.

Ricardo Reis

Para Sara, Raquel, Lia e para todas as crianças
























Eu queria uma escola que cultivasse
a curiosidade de aprender
que é em vocês natural.

Eu queria uma escola que educasse
seu corpo e seus movimentos:
que possibilitasse seu crescimento
físico e sadio. Normal

Eu queria uma escola que lhes
ensinasse tudo sobre a natureza,
o ar, a matéria, as plantas, os animais,
seu próprio corpo. Deus.

Mas que ensinasse primeiro pela
observação, pela descoberta,
pela experimentação.

E que dessas coisas lhes ensinasse
não só o conhecer, como também
a aceitar, a amar e preservar.

Eu queria uma escola que lhes
ensinasse tudo sobre a nossa história
e a nossa terra de uma maneira
viva e atraente.

Eu queria uma escola que lhes
ensinasse a usarem bem a nossa língua,
a pensarem e a se expressarem
com clareza.

Eu queria uma escola que lhes
ensinassem a pensar, a raciocinar,
a procurar soluções.

Eu queria uma escola que desde cedo
usasse materiais concretos para que vocês pudessem ir formando corretamente os conceitos matemáticos, os conceitos de números, as operações… pedrinhas… só porcariinhas!… fazendo vocês aprenderem brincando…

Oh! meu Deus!

Deus que livre vocês de uma escola
em que tenham que copiar pontos.

Deus que livre vocês de decorar
sem entender, nomes, datas, fatos…

Deus que livre vocês de aceitarem
conhecimentos “prontos”,
mediocremente embalados
nos livros didáticos descartáveis.

Deus que livre vocês de ficarem
passivos, ouvindo e repetindo,
repetindo, repetindo…

Eu também queria uma escola
que ensinasse a conviver, a
coooperar,
a respeitar, a esperar, a saber viver
em comunidade, em união.

Que vocês aprendessem
a transformar e criar.

Que lhes desse múltiplos meios de
vocês expressarem cada
sentimento,
cada drama, cada emoção.

Ah! E antes que eu me esqueça:

Deus que livre vocês
de um professor incompetente.



Carlos Drummond de Andrade

A centopeia






















Quem foi que primeiro
teve a ideia
de contar um por um
os pés da centopeia?

Se uma pata você arranca
será que a bichinha manca?

E responda antes que eu esqueça
se existe o bicho de cem pés
será que existe algum de cem cabeças?


Marina Colasanti

Guarda-chuvas

















Tenho quatro guarda-chuvas
todos os quatro com defeito;
Um emperra quando abre,
outro não fecha direito.

Um deles vira ao contrário
seu eu abro sem ter cuidado.
Outro, então, solta as varetas
e fica todo amassado.

O quarto é bem pequenino,
pra carregar por aí;
Porém, toda vez que chove,
eu descubro que esqueci…

Por isso, não falha nunca:
se começa a trovejar,
nenhum dos quatro me vale –
eu sei que vou me molhar.

Quem me dera um guarda-chuva
pequeno como uma luva
Que abrisse sem emperrar
ao ver a chuva chegar!

Tenho quatro guarda-chuvas
que não me servem de nada;
Quando chove de repente,
acabo toda encharcada.

E que fria cai a água
sobre a pele ressecada!
Ai…


Rosana Rios

A Foca























Quer ver a foca
Ficar feliz?
É por uma bola
No seu nariz.
Quer ver a foca
Bater palminha?
É dar a ela
Uma sardinha.
Quer ver a foca
Fazer uma briga?
É espetar ela
Bem na barriga!

Vinicius de Moraes

Por enquanto sou pequeno

















Por enquanto sou pequeno,
muita coisa eu não sei.
Eu só sei que estou gostando
deste mundo onde eu cheguei.

Não me apressem por favor,
sei que ainda não cresci.
Mas vejam que eu estou tentando,
me esperem que eu chego aí!


Pedro Bandeira

O Direito das Crianças












Toda criança no mundo
Deve ser bem protegida
Contra os rigores do tempo
Contra os rigores da vida.

Criança tem que ter nome
Criança tem que ter lar
Ter saúde e não ter fome
Ter segurança e estudar.

Não é questão de querer
Nem questão de concordar
Os direitos das crianças
Todos têm de respeitar.

Tem direito à atenção
Direito de não ter medos
Direito a livros e a pão
Direito de ter brinquedos.

Mas criança também tem
O direito de sorrir.
Correr na beira do mar,
Ter lápis de colorir…

Ver uma estrela cadente,
Filme que tenha robô,
Ganhar um lindo presente,
Ouvir histórias do avô.

Descer do escorregador,
Fazer bolha de sabão,
Sorvete, se faz calor,
Brincar de adivinhação.

Morango com chantilly,
Ver mágico de cartola,
O canto do bem-te-vi,
Bola, bola,bola, bola!

Lamber fundo da panela
Ser tratada com afeição
Ser alegre e tagarela
Poder também dizer não!

Carrinho, jogos, bonecas,
Montar um jogo de armar,
Amarelinha, petecas,
E uma corda de pular.

Ruth Rocha

A bailarina


















Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.
Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé.

Não conhece nem mi nem fá
Mas inclina o corpo para cá e para lá

Não conhece nem lá nem si,
mas fecha os olhos e sorri.

Roda, roda, roda, com os bracinhos no ar
e não fica tonta nem sai do lugar.

Põe no cabelo uma estrela e um véu
e diz que caiu do céu.

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Mas depois esquece todas as danças,
e também quer dormir como as outras crianças.

Cecília Meireles

COMPOSIÇÃO ESCRITA EM SEU EXEMPLAR DA GESTA DE BEOWULF























Às vezes me pergunto que razões
Me movem a estudar sem esperança
De precisão, enquanto a noite avança,
O idioma dos ásperos saxões.

No desgaste dos anos a memória
Deixa cair em vão a repetida
Palavra e é assim que a minha vida
Tece e destece a sua exausta história.

Porventura de algum modo, contudo,
Secreto e suficiente a alma sabe
Que é imortal e que seu vasto e grave

Círculo abarca tudo e pode tudo.
Mas além deste afã e deste verso
Me aguarda inesgotável o universo.

.

COMPOSICIÓN ESCRITA EN UN EJEMPLAR DE LA GESTA DE BEOWULF


A veces me pregunto qué razones
Me mueven a estudiar sin esperanza
De precisión, mientras mi noche avanza
La lengua de los ásperos sajones.

Gastada por los años la memoria
Deja caer la en vano repetida
Palabra y es así como mi vida
Teje y desteje su cansada historia.

Será (me digo entonces) que de un modo
Secreto y suficiente el alma sabe
Que es inmortal y que su vasto y grave

Círculo abarca todo y puede todo.
Más allá de este afán y de este verso
Me aguarda inagotable el universo.

Jorge Luis Borges, em “Quase Borges: 20 transpoemas e uma entrevista”. [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.

Sete Canções de Declínio
















1
Um vago tom de opala debelou
Prolixos funerais de luto de Astro
E pelo espaço, a Oiro se enfolou
O estandarte real livre, sem mastro.

Fantástica bandeira sem suporte,
Incerta, nevoenta, recamada
A desdobrar-se como a minha Sorte
Predita por ciganos numa estrada ...

2
Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo.
— Desçamos panos de fundo
A cada hora vivida!

Desfiles, danças embora
Mal sejam uma ilusão...
Cenário de mutação
Pela minha vida fora!

Quero ser Eu plenamente:
Eu, o possesso do Pasmo.
Todo o meu entusiasmo,
Ah! que seja o meu Oriente!

O grande doido, o varrido,
O perdulário do Instante
O amante sem amante,
Ora amado, ora traído ...

Lançar os barcos ao Mar
De névoa, em rumo de incerto...
Pra mim o longe é mais perto
Do que o presente lugar.

...E as minhas unhas polidas
Idéia de olhos pintados...
Meus sentidos maquilados
A tintas conhecidas ...

Mistério duma incerteza
Que nunca se há de fixar...
Sonhador em frente ao mar
Duma olvidada riqueza ...

Num programa de teatro
Suceda-se a minha vida
Escada de Oiro descida
Aos pinotes, quatro a quatro! ...

3
Embora num funeral
Desfraldemos as bandeiras
Só as cores são verdadeiras
Siga sempre o festival!

Quermesse — eia! — e ruído!
Louça quebrada! Tropel!
(Defronte do carrossel,
Eu, em ternura esquecido... )

Fitas de cor, vozearia —
Os automóveis repletos:
Seus chauffeurs — os meus afetos
Com librés de fantasia!

Ser bom... Gostaria tanto
De o ser... Mas como? Afinal
Só se me fizesse mal
Eu fruiria esse encanto.

— Afetos?... Divagações...
Amigo dos meus amigos...
Amizades são castigos,
Não me embaraço em prisões!

Fiz deles os meus criados,
Com muita pena decerto.
Mas quero o Salão aberto,
E os meus braços repousados.

4
As grandes Horas! — vive-las
A preço mesmo dum crime!
Só a beleza redime —
Sacrifícios são novelas.

"Ganhar o pão do seu dia
Com o suor do seu rosto..."
— Mas não há maior desgosto
Nem há maior vilania!

E quem for Grande não venha
Dizer-me que passa fome.
Nada há que se não dome
Quando a Estrela for tamanha!

Nem receios nem temores,
Mesmo que sofra por nós
Quem nos faz bem. Esses dós
Impeçam os inferiores.

Os Grandes, partam — dominem
Sua sorte em suas mãos:
— Toldados, inúteis, vãos,
Que o seu Destino imaginem!

Nada nos pode deter;
O nosso caminho é de Astro!
Luto — embora! — o nosso rastro,
Se pra nós Oiro há de ser! ...

5
Vaga lenda facetada
A imprevisto e miragens —
Um grande livro de imagens,
Uma toalha bordada ...

Um baile russo a mil cores.
Um Domingo de Paris —
Cofre de Imperatriz
Roubado por malfeitores.

Antiga quinta deserta
Em que os donos faleceram —
Porta de cristal aberta
Sobre sonhos que esqueceram ...

Um lago à luz do luar
Com um barquinho de corda...
Saudade que não recorda —
Bola de tênis no ar...

Um leque que se rasgou —
Anel perdido no parque —
Lenço que acenou no embarque
De Aquela que não voltou ...

Praia de banhos do sul
Com meninos a brincar
Descalços à beira-mar,
Em tardes de céu azul...

Viagem circulatória
Num expresso de vagões-leitos —
Balão aceso — defeitos
De instalação provisória ...

Palace cosmopolita
De rastaquoères e cocottes —
Audaciosos decotes
Duma francesa bonita ...

Confusão de music-hall,
Aplausos e brou-u-ha —
Interminável sofá
Dum estofo profundo e mole. . .

Pinturas a "ripolin",
Anúncios pelos telhados —
O barulho dos teclados
Das Lynotype do Matin...

Manchete de sensação
Transmitida a todo o mundo —
Famoso artigo de fundo
Que acende uma revolução ...

Um sobrescrito lacrado
Que transviou no correio,
E nos chega sujo — cheio
De carimbos, lado a lado. . .

Nobre ponte citadina
De intranqüila capital —
A umidade outonal
De uma manhã de neblina ...

Uma bebida gelada —
Presentes todos os dias. . .
Champanha em taças esguias
Ou água ao sol entornada ...

Uma gaveta secreta
Com segredos de adultérios...
Porta falsa de mistérios —
Toda uma estante repleta:

Seja enfim a minha vida
Tarada de ócios e Lua:
Vida de Café e rua,
Dolorosa, suspendida —

Ah! mas de enlevo tão grande
Que outra nem sonho ou prevejo...
— A eterna mágoa dum beijo,
Essa mesma, ela me expande ...

6
Um frenesi hialino arrepiou
Pra sempre a minha carne e a minha vida.
Fui um barco de vela que parou
Em súbita baía adormecida ...

Baía embandeirada de miragem,
Dormente de ópio, de cristal e anil,
Na idéia de um país de gaze e Abril,
Em duvidosa e tremulante imagem ...

Parou ali a barca — e, ou fosse encanto,
Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento,
Não mais aparelhou... — ou fosse o vento
Propício que faltasse: ágil e santo ...

...Frente ao porto esboçara-se a cidade,
Descendo enlanguescida e preciosa:
As cúpulas de sombra cor-de-rosa,
As torres de platina e de saudade.

Avenidas de seda deslizando,
Praças de honra libertas sobre o mar
Jardins onde as flores fossem luar;
Lagos — carícias de âmbar flutuando ...

Os palácios de renda e escumalha.
De filigrana e cinza as catedrais —
Sobre a cidade a luz — esquiva poalha
Tingindo-se através longos vitrais ...

Vitrais de sonho a debruá-la em volta,
A isolá-la em lenda marchetada:
Uma Veneza de capricho — solta,
Instável, dúbia, pressentida, alada...

Exílio branco — a sua atmosfera,
Murmúrio de aplausos — seu brou-u-ha...
E na praça mais larga, em frágil cera,
Eu — a estátua "que nunca tombará"...

7
Meu alvoroço de oiro e lua
Tinha por fim que transbordar...
— Caiu-me a Alma ao meio da rua,
E não a Posso ir apanhar!


Mário de Sá-Carneiro

Se fores poema


Viver é inventar em mim
Um tempo que não chegou ao fim
E dessa imagem que se deu
Naquela hora

Ficou em nós um amanhã
Que se demora

Perdido por entre os teus segredos
Guardado na cama entre os meus dedos
E desse amor ficou aqui o teu olhar
Este meu verso que é canção de madrugar

Se fores poema pensado em nós
Razão esquecida num adeus que é despedida
E que nos acorda a voz

Verso sonhado pensado em nós
Razão esquecida num adeus que é despedida
E que nos acorda a voz

Se fores poema pensado em nós
Razão esquecida num adeus que é despedida
E que nos acorda a voz

Verso sonhado que não deu flor
E pões na pele um gosto de limão e mel
Se fores poema de amor


Fernanda Lopes

Poema

















É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.


Carlos Drummond de Andrade

Geleira













nem todos os dias são de cólera
alguns são de esfumaçada coragem
contra o frio da cólera

o enforcado pode durar
bem mais que supúnhamos
eu, você, toda gente

há notícias que numa vasta manhã
o gelo começou a derreter
num ponto azul da terra
e era um gelo conhecido das guerras

quando terminamos uma dolorosa travessia
ninguém nos abraça ou nos oferece festejo
nossa testemunha solitária
escreve um bilhete, um poema na geleira
e uma onda de alegria
se revela miúda, silenciosa

ainda assim quebra a vidraça, as emergências
atravessa os tímpanos
contrai a carne de dentro até o susto
de permanecer viva

Patricia Porto

O Tempo seca o Amor

O tempo seca a beleza, seca o amor, seca as palavras. Deixa tudo solto, leve, desunido para sempre como as areias nas águas. O tempo seca a ...

Nos últimos 30 dias.