Um deus foragido olha do cimo da destruição















Um círio infindo de punhos acesos
coturnos raivosos em marcha
um rebanho desembesta em fúria e a esmo
uma revoada de abutres sobre um campo
coalhado de ossos e vísceras
À margem esquerda
olhos atônitos nem sequer esboçam mínima reação
nem sequer vicejam a luta
e sucumbem à opressão
toda vociferação converte-se em murmúrio
imprecação e silêncio
No abrasar das horas
o tempo reflui num leito de açoites
No pouso do medo
toda réstia de luz coabita o breu
o medo cai como pedra no fundo de cada dia
e a desesperança cintila à boca de cada noite
O poder no cio
fecha as janelas de um passado
fincado em irremovível paisagem
— o poder tem os olhos de uma noite sem fim
A violência é a ordem do dia — o veneno
que entorpece e contagia
abre fendas radioativas onde corre a larva do ódio
Algo inominável deflagra a combustão das horas
interdita o tempo
o tempo partido
o país partido
a cidade partida
o humano partido ao meio
Toda gente se extingue para além das casas
e dos muros
a sobrevida pulsa em ilhas dentro de ilhas
Sob a mira do fuzil
a carne negra
a carne índia
a cor vermelha
A descrença é a ferida aberta
o cancro incurável
A segregação é a flor sanguínea de verbo coagulado
e toda esperança desfolha aos ventos
que chicoteiam brancas bandeiras
A intolerância forja a gangrena
seus raios de dor são o traçado
que revela a geometria do terror
No átrio espelhado de ocasos
a besta de esporas e chifres faz a festa
dança — gargalha
e vomita sobre a clareira côncava
que engole os cânones dos justos
Nesse reino escuro o frio arde
e queima ao estio do sol
vergam-se os girassóis
e gárgulas saem de seus buracos de sangue
para lamber as feridas da paz
Mulheres e homens que teimam
reinar em si a íntima liberdade de pensar
decretam o autoexílio
todas ilhadas
todos ilhados
ilhados e tristes
terrivelmente tristes
Um deus foragido olha do cimo da destruição
contempla o ataúde da fé
e chora sobre as ruínas do humano
em seus gestos finais de autofagia
a sobrehumana desordem de sentidos precede o golpe fatal:
a morte da liberdade.

Wanda Monteiro

Obras publicadas: O beijo da chuva (Editora Amazônia, 2008), Anverso (Editora Amazônia, 2011), Duas mulheres entardecendo (em parceria com a escritora Maria Helena Latinni, Editora Tempo, 2015), Aquatempo (Editora Literacidade, 2016), A liturgia do tempo e outros silêncios (Editora Patuá, 2019).

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