Leite de cabra














mamãe me deu leite de cabra,
não quis dar do peito pro bico continuar durinho

leite de cabra era doce
distante dos meus amargos

mamãe bebia, fumava, dançava até ficar doida
me prendia de castigo num quarto sem janelas
castigo por eu ter aquela cara de marmota
- enjoada que nem devia ter nascido - ela dizia

um dia me chamou de manso: parecia carinho
- pega lá, menina, aquela tesoura
peguei, achei que era gesto pra ficar bonita que nem ela
esse cabelo aqui você gosta? O bafo da bebida me aquecia o rosto
gosto sim, mãezinha. Então passou a tesoura, tão rente do casco
que estremi, cortou a franja, não deixou notícia de menina na cabeça
assim fica melhor, disse entre a fumaça do cigarro
não vai pegar piolho
parece menino, que era o que devia ser

leite de cabra veio quente na boca,
tão doce que aguei


Patrícia Porto - Cabeça de Antígona (Reformatório,2017)

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